O filme “A Vila”, dirigido, escrito e produzido por M. Night Shyamalan (de “Tempo”, 2021), prova, mais uma vez, que o diretor sabe dirigir um filme, combinando grandes nomes cinematográficos, eventos assustadores e, desta vez, consegue fazer uma reflexão social profunda sobre uma sociedade utópica, envolvendo liberdade, segurança, controle social e como, embora tudo isso junto possa ser um sonho concretizado, é difícil fugir de certos conflitos, como a violência e o medo.

Em seu quarto longa como diretor, Shyamalan explora o medo interior, obscuro, profundo, real e com imaginário das pessoas, com cenas carregadas de suspense e com muito pouco uso de efeitos especiais. A verdade é que, novamente, o thriller leva a marca “Shyamalan” legítima: suspense, reviravoltas e o tão esperado final inesperado. Nem tudo é o que parece ser e os personagens são facilmente manipulados, se forem devidamente explorados do ponto de vista certo pelo diretor – como sempre são.


A história de “A Vila” se passa no final do século XIX, e gira em torno de um idílico vilarejo no condado de Covington, no interior da Pennsylvania, isolado do resto do mundo e são controlados pelo Conselho de Anciões, que se juntaram e organizaram suas próprias regras e normas de convivência. Os habitantes cultivam, produzem e preservam seus próprios alimentos, com todos colaborando para a boa convivência da comunidade. Durante muitos anos, os moradores da vila, que é circundada por um bosque, vivem harmoniosamente com míticas criaturas que habitam a floresta. Na realidade, os seres ocultos, conhecidos como “Aquelas-de-Quem-Não-Falamos”, e os habitantes da vila possuem um pacto fatal: os moradores da vila estão proibidos de ultrapassar as fronteiras do local, adentrando no bosque. Feito isso, os monstros da floresta também não precisarão entrar no vilarejo. Porém, nem todos do vilarejo parecem estar satisfeitos com aquele mundinho apartado da comunidade isolada, sem terem qualquer noção do perigo e da realidade fora dos muros que cerca a vila.

Após a morte de uma das crianças do lugar, vitimada por causa de uma doença pela falta de remédios e tratamento médico suficiente, Lucius Hunt (Joaquim Phoenix, de “Gladiador”, 2000), filho de uma das dirigentes da vila, Alice Hunt (Sigourney Weaver, de “Avatar”, 2009), propõe aos conselheiros da vila a ir ele mesmo até a cidade mais próxima com a finalidade de somente buscar mais medicamentos e remédios, para ajudar outras pessoas da vila, que eventualmente possam adoecer. O problema começa a partir daí, quando, mesmo depois de ter seu pedido de viajar para a cidade negado, as criaturas misteriosamente “quebram” o pacto e começam a invadir a vila, ameaçando os habitantes. A situação piora quando, posteriormente, Noah Percy (Adrien Brody, de “O Pianista”, 2002), um rapaz com deficiência mental, ataca Lucius por ciúme pelo fato dos 2 rapazes gostarem de Ivy Walker (Bryce Dallas Howard, de “Jurassic World: Reino Ameaçado”, 2018), uma bonita jovem cega, filha de um dos dirigentes do lugar, Edward Walker (William Hurt, de “Viúva Negra”, 2021); mas é Lucius quem acaba ficando noivo de Ivy.


Uma vez que os habitantes da vila nunca conheceram a cidade (com exceção dos Anciões), consequentemente eles não tem acesso à ciência e à tecnologia, não convivem com os respectivos problemas (tal como a violência, ganância, cobiça e outros problemas mundanos), e convivem com sua crendice acerca de como a vida é limitada ao espaço em que vivem; como seus comportamentos enquanto “sociedade” afastados da civilização afeta e influencia seus cidadãos, eis que surge uma questão: por que este grupo de pessoas é “diferente” das pessoas que vivem nas cidades, enquanto “sociedade,” mesmo fora de outros grupos que conhecemos como civilização? Esta é a crítica social que podemos perceber no filme em tela: pessoas que decidiram sair das grandes cidades para fundarem uma comunidade afastada de qualquer civilização, trocando qualquer vantagem tecnológica e científica que somente as grandes cidades podem oferecer para morar em um pequeno lugar isolado, longe de seus respectivos problemas cotidianos, tais como violência, ganância e quaisquer influências externas que podem contaminar maliciosamente qualquer dos jovens da nova geração que nasceu dentro daqueles muros.

Os habitantes da vila são um grupo de pessoas que decidiram criar sua própria comunidade, com suas próprias regras de convivência; levando em consideração o comportamento deles em relação à das pessoas que vivem nas cidades e como eles preferiram se proibir de voltar ao mundo fora dos muros. Tal ponto pode ser percebido na forma como o medo é explorado entre os mais jovens pelos Anciões, que são os dirigentes. Isso também lhes garante um controle sobre os habitantes, pois o medo do desconhecido é facilmente manipulável entre as pessoas que trocaram liberdade por segurança e decidiram ficar no conforto da sua própria ignorância do que se aventurar na verdade.


No filme em tela, o medo é a ferramenta que controla a comunidade, mantendo-a isolada dentro dos limites daquele determinado perímetro. Pois é pelo medo da violência e da selvageria das cidades que os Anciões criaram um medo do desconhecido para, assim, conseguir controlar as rédeas da Vila e manter os habitantes dentro daquela comunidade isolada. Ora pois, os habitantes mais jovens nunca conviveram com a violência e outros traumas das cidades, então não poderiam ter medo de algo tão distante; com isso, os Anciões decidiram criar um medo mais próximo, que pudesse afetar a vila de alguma forma, caso alguma regra estabelecida fosse descumprida. É a partir desse medo do desconhecido que se construiu as relações entre os membros no interior da vila. E é aí que entra as criaturas ferozes que habitam as florestas que circundam a vila e aterrorizam quem cruzar a demarcação e entrar na mata.

Em outras palavras, “A Vila” é uma crítica social sobre como uma comunidade pode ser construída com novas regras e um novo estilo de vida, baseada justamente na sociedade moderna contemporânea com apenas algumas remodelações, tirando os males que assolam a civilização, tais como ganância pelo dinheiro, violência, cobiça e insegurança. Ou seja, os moradores da comunidade renunciaram uma vida em sociedade nas cidades com seus consideráveis “luxos” (com seu cotidiano, sua tecnologia, sua ciência, facilidade e praticidade), se fechando em uma bolha, vivendo isoladamente, acreditando somente no que se ensinam lá dentro da vila, temendo o desconhecido e sacrificaram uma vida social com outras pessoas nas cidades sem ao menos conhecer, de fato, a sociedade, justamente por causa de seus “males”, pelo qual nunca conheceram, nunca presenciaram e, ainda assim, o temem ainda assim.


Nessa esteira, Shyamalan mostra como o ser humano facilmente troca sua liberdade ao tentar construir uma utopia para satisfazer uma falsa segurança, apenas para escapar da violência e de outros problemas mundanos que assolam a sociedade nas cidades hoje em dia. E o diretor o faz de forma bem plausível. Desta forma, os habitantes da vila criaram uma aparente comunidade perfeita e autossuficiente dentro daquela microrregião, embora muito insegura e afugentada em relação ao mundo exterior.

Infelizmente, como nada é perfeito, Shyamalan deixa o rojão estourar antes do tempo, ou seja, dessa vez, ele revela a surpresa muito cedo. Como todos os seus filmes possuem o final inesperado e dessa vez como não quis ser diferente, Shyamalan, erroneamente, acaba se precipitando e liberando a verdade em um momento inoportuno, o que é uma fatalidade. Bem, é uma verdade que, durante o filme, muitos de nós gostaríamos de nos iludir por mais algum tempo e que o diretor tivesse segurado as pontas, ou melhor, o suspense, por mais alguns instantes antes de nos surpreender. Talvez o culpemos por esse erro, mas uma coisa é indiscutível: não precipitar é a melhor saída. Shyamalan é dono de uma carreira, e muito boa por sinal, mas cometer um erro como esse, é uma fatalidade. Talvez Shyamalan seja um diretores mais bem detalhistas dos tempos atuais e que ainda sabe fazer bons filmes de suspense, com bom conteúdo e de boa qualidade. Se for o caso, ele faz parte dos poucos, bem poucos, diretores com uma visão diferenciada de cinema, apresentando um leque grande em cima de pessoas e situações extremamente inusitadas.


Sobre o elenco, destaque para a ainda jovem Bryce Dallas Howard, filha do diretor Ron Howard (de “Uma Mente Brilhante”, 2001), que até então tinha feito apenas pequenas pontas em alguns filmes, como “Apollo 13 – do Desastre ao Triunfo” (1995) e “O Grinch” (2000), mas só foi realmente notada quando protagonizou Ivy Walker em “A Vila”, e demonstrou que não precisa do pai para mostrar que possui talento para atuar. Curiosamente, a trilha sonora e a música do filme, como em todos os filmes de Shyamalan, ficam por conta de James Newton Howard, indicado ao Oscar 1993 por Melhor Trilha Sonora pelo filme “O Fugitivo” (1993), clássico para filmes de suspense e clima de mistério.

A Vila pode não ser o melhor longa de Shyamalan e, frequentemente, é incompreendido por muitas pessoas. Mas, com certeza, o filme nos traz uma bela reflexão sobre como a atual sociedade está tão contaminada pela violência e outros males, que algumas pessoas profundamente feridas por traumas destes males preferem abdicar de todos os progressos e avanços tecnológicos (e de outros benefícios) das cidades para viverem em uma (suposta) comunidade utópica perfeita, longe de qualquer influência externa que abale sua micro segurança e, assim, assegurando uma comunidade mais segura e feliz, mesmo que isso custe sua liberdade e, talvez, a sua paz também,  controlada pelo medo do desconhecido. M. Night Shyamalan, ao entregar “A Vila”, prova, pela quarta vez, que tem capacidade profissional para dirigir um ótimo suspense, sabendo utilizar perfeitamente as reviravoltas e finais inesperados.

Nota: 9.0

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