O triunfo da narrativa de personagens sobre a narrativa de trama e espetáculo
A famosa Era de Ouro da Televisão é criação de mito pura e simplesmente, no final dos anos noventa até a década passada (há divergências) houve um período ímpar para a mídia televisiva, na quais séries tornaram-se maduras em seus temas e abordagens, com narrativas adultas que não tinham medo de explorar todas as facetas da natureza humana — nessa época que surgiu The Sopranos, Mad Men, Breaking Bad, The Wire, e tantas obras aclamadas.
Entretanto, essas séries eram uma minoria dentro da programação dos canais a cabo, e apesar do relativo sucesso (dessas mencionadas apenas Sopranos, e talvez the Wire, realmente eram gigantes de audiência) as séries mais assistidas continuavam sendo as processuais, sistemáticas e formulaicas, seus Law and Order e Grey's Anatomy da vida.
No entanto esse mito da Era de Ouro foi o suficiente para trazer o brilho nos olhos dos criadores e roteiristas inseridos nessa indústria, todo mundo queria ser adultinho e provar que a televisão era tão poderosa quanto o cinema (bom ressaltar que autores como o Coppola e o Tarantino criticam essa noção da televisão como uma mídia evoluída);
O que muitos desses criadores e roteiristas não entendiam é que o que fazia séries como Sopranos serem tão profundas não era o sexo e o sangue (a ideia juvenil Snyderiana do que é necessário para uma obra de arte ser adulta) e sim a forma como os personagens eram trabalhados, principalmente psicologicamente; a televisão se provou uma mídia de escritores enquanto o cinema é uma mídia de diretores. Episódios de Sopranos poderiam ser meditações sobre a finalidade da vida, divórcio, natureza x criação, o mau estar na sociedade moderna, tudo isso visto através das perspectivas de suas personagens, mas que vão de um um mafioso de meia-idade a uma jovem adulta liberal na universidade.
O que muitos tentaram emular depois, mas falharam, pois estavam bêbados no planejamento de trama; temporadas eram planejadas com uma estrutura de filme de oito horas, com os finais de cada episódio servindo como o fim de um ato, e o começo do próximo episódio como o começo do outro ato. Em Sopranos e Mad Men, cada episódio era como um filme próprio, focado em personagens e temas específicos, com a capacidade do espectador respirar a cada episódio e adentrar no mundo cada vez mais, e não ficar apenas no suspense do que irá ocorrer em seguida, cliffhanger sensacional após cliffhanger sensacional, enquanto os personagens eram negligenciados.
Meu carinho por Sopranos e análise do cenário televisivo serve como prelúdio do que vejo como o ponto forte de Pinguim: trazer a narrativa de personagens mediada pela narrativa de trama, não como síntese mas como um cavalo de Tróia; espectadores estão tão acostumados com a estrutura de temporadas como filmes que esse acaba sendo o padrão, mas Pinguim quebra o padrão enquanto passa a impressão de estar no mesmo. Acho que cada episódio serve como um filme próprio, e esses filmes formam a temporada magnífica de Pinguim.
O primeiro episódio principalmente. Se você assistir apenas ele e mais nenhum outro, ainda teria uma experiência mais do que agradável. Claro, você não veria o espiral destrutivo do Oz, mas teria uma história com várias possibilidades. É isso que admiro em Pinguim, os episódios com arcos fechados mas que juntos integram uma narrativa coerente que não é um filme de oito horas mas uma série, no seu sentido real. É isso que a Era de Ouro da Televisão nos tirou: o poder das histórias serializadas. Agora toda série tem que ser um filme de mil e uma horas.
E essa quebra de padrão é vista na trama sendo um produto dos arcos dos personagens, dos próprios personagens; se Oz é um filho da puta egoísta obcecado em ser amado e conseguir poder, a trama vai trabalhar para isso, e não o contrário. Se há a ideia de uma relação fraternal, de mestre e pupilo, do Oz e Victor acabando mal por causa do egoísmo do icônico vilão do Batman, essa ideia estará presente em cada cena, formando o espiral destrutivo do Pinguim, o cenário temático sendo consistente a cada episódio, ato e cena.
Pinguim nos deleita com outro aspecto bem elogiado da Era de Ouro da Televisão: as performances. O sotaque e comportamento desprezível são apenas a ponta do iceberg, Colin Farrell sabe transitar entre os momentos de humanidade e inumanidade do Cobb, entre a seriedade de sua personalidade antisocial e o aspecto cartunesco inerente ao personagem, ele não atua mal em nenhuma batida, é um mergulho de cabeça na psique do personagem impressionante, digna do tanto de prêmios que conseguir.
Se a série peca, ela peca esparsamente, com alguns pontos negativos que podem ser percebidos, mas não elevados à importância ao ponto de serem deletérias para o aproveitamento da série; visualmente a série segue a identidade visual do Batman de Matt Reeves, com a fotografia privilegiando um foco raso, uma pouca profundidade de campo, além dos tons mais frios e contrastes luz-sombra mais atenuados, mas os diretores aqui não estão no nível do Reeves, e alguns episódios não são tão criativos na direção e seguem apenas a cartilha que descrevi, além de que o orçamento não dá conta de mostrar essa Gotham gótica filmada em Edimburgo, então você tem cenários menos impressionantes (mas alguns stablishing shots criam uma atmosfera de Nova York dos anos 70 tão intoxicante que acabei relevando). Há também o problema da superficialidade de personagens secundários como Julian Rush e Johnny Viti.
Lauren LeFranc, lhe saudo pela forma como escreveu os personagens do Pinguim, Victor e Sofia Gigante — isso irá parecer polêmico, mas a talentosa Cristin Milioti não chega a genialidade do Farrell, mas ela foi tenaz em sua performance imponente, nem parece a atriz cujos personagens são, em sua maioria, fofas e inofensivas. LeFranc é aguçada em sua narrativa que usa a classe como um fator principal e que move os personagens (não é algo que vejo nos filmes de super-heróis mais), algo também visto no filme do Reeves; o desejo compartilhado do Oz e do Victor por ascenção social em uma sociedade neocapitalista na beira do colapso com suas contradições. O único meio de alcançar o topo é por meios sujos como o crime, ninguém honesto é recompensado — e obviamente isso se alinha com o retrato de Gotham como uma cidade corrupta.
O background de classe dos personagens do Oz e Victor é importante, assim como na personagem da Sofia: criada na influente família Falcone, rica e composta por mafiosos; a série também tem uma análise com nuances sobre o que leva pessoas a tomarem atitudes extremas, se antes Sofia era só uma patricinha aliviando a consciência com a filantropia, sem nenhum indício de comportamento violento ou criminoso, o mesmo não pode ser dito depois de sua experiência em Arkham... o indivíduo é fruto do seu meio, isso é visto na Sofia, no Oz e no Victor. Pinguim não tem uma visão ingênua da humanidade. Ninguém nasce herói ou vilão, não há natureza humana, o determinismo não é genético-genealógico mas engendrado nas condições materiais, ao ambiente. Os personagens são seres psicossociais, algo que no subgênero não é permitido, apenas caricaturas unidimensionais.
Veremos o que o final da série representa para a Saga do Batman, e como o personagem do Oz Cobb será trabalhado e desenvolvido em The Batman Part II. Reeves está criando e supervisionando histórias que colocam o espetáculo para o escanteio e focam em seus personagens.
Nota: 8,5
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