Obra-prima de Grant Morrison prova a atemporalidade do Superman e o poder de suas histórias

Em seu livro Superdeuses — uma análise da história dos super-heróis e seu impacto na cultura pop e também um relato de memórias — Grant Morrison delineia sua filosofia de ideias. A pergunta recorrente feita a ele (e a vários outros escritores e tipos criativos), “de onde você tira suas ideias?” foi a base para a HQ do Flex Mentallo e desde então o careca escocês teve muito o que pensar sobre ideias e o seu impacto no mundo material.

Basicamente, Morrison explica como a bomba atômica primeiramente foi uma ideia, uma destrutiva que teve implicações nefastas no mundo, como o assassinato de centenas de milhares de pessoas e a paranóia da extinção humana por holocausto nuclear. Ela representa o que há de pior em nós. E então ele explica como Superman também começou como uma ideia, um personagem cujo poder só é equiparado a sua compaixão e humanidade. Ele representa o que há de melhor em nós. A humanidade eventualmente irá aspirar ao ideal do Superman, e será tão poderosa quanto ele. Se o Morrison realmente acredita que no futuro nos tornaremos uma raça de super-humanos (o mesmo que perguntar se ele realmente acredita que foi abduzido por alienígenas da quarta dimensão em Katmandu) puramente por acreditar na ideia e através da vontade torná-la real, não sei. Mas entender sua filosofia ajudará a entender Grandes Astros: Superman.

E também é importante entender que na arte existe o problema da mimesis, da representação. A maioria deve se lembrar do mundo ideal, a metafísica formulada por Platão de como tudo que existe é uma cópia do que há no mundo ideal (uma cadeira no nosso mundo é a cópia de uma cadeira ideal), mas isso também implica algo na arte, que tenta representar o nosso mundo que já é uma representação por si; a arte então não tem valor porque é uma cópia de uma cópia, distante da verdade por dois graus de separação. Um parâmetro de valor para as artes foi, por muito tempo, o quão próximo do mundo real ela chegava, a sua qualidade como representação. 

Grant Morrison, a cabeça brilhante e lustrosa por trás de Grandes Astros: Superman

Morrison (e muitos outros antes dele, obviamente) rompe com essa noção. Ele não almeja uma representação do mundo, mas um refazimento, por meio de sua realização de um outro mundo no papel ele pode se tornar real fora dele. É um anti-realismo que não se preocupa com a estrutura do nosso mundo, mas do mundo que está por vir, idealizado na história. 

E o que Morrison está interessado em representar são experimentos de pensamento, tropos e arquétipos — suas histórias estão repletas de naves espaciais, hologramas, antigravidade, robôs, vírus mentais. Ele escreve narrativas que operam em vários gêneros, que brincam com estruturas clássicas de mitos e fábulas e as injeta com uma nova vitalidade ao subverter expectativas, sem que isso sacrifique a essência da estrutura na qual Morrison está experimentando.

Então delimitamos duas das principais características de seu projeto e obra: a imaginação, a ideia usada para a transformação da própria realidade e a idealização de narrativas que transcendem o realismo.

De certa forma, Superman já é real. Morrison explica como o Universo DC é esse universo 2D que acessamos por meio das histórias em quadrinhos em nossas mãos, em nosso universo 3D. A transformação da realidade é estabelecida nessa comunicação telepática, por falta de um termo melhor, entre escritor e leitor por intermédio da HQ. Ideias são apresentadas e desenvolvidas na narrativa que busca te mover e comover. Se uma história te faz chorar, refletir sobre o mundo ou sobre si mesmo, te enche de raiva ao expor um problema, já está havendo uma interferência com o mundo real. Morrison, apesar de seu estilo caracterizado pelo ritmo inquieto, no qual ideia e conceito são apresentados depois de ideia e conceito, sem tempo para respirar, e sua escrita por vezes difícil (com seus termos complicados, neologismos de ficção científica como yoctosfera e megantropo), consegue escrever momentos tocantes com uma humanidade profunda;

A cena da morte do Jonathan Kent não é tão impactante de início, por mais que a reação do Clark, ao não ter conseguido se despedir por estar ocupado lutando contra um monstro devorador de tempo, seja de cortar o coração, o que realmente faz com que ninjas cortadores de cebolas apareçam é, quando logo depois, vemos o Superman desconhecido (um Superman cujo rosto é coberto como se fosse uma múmia) tendo um breve diálogo com o fazendeiro carismático do Kansas. Jonathan pergunta se o Clark irá ficar bem, ao que o Superman desconhecido responde, “no fim tudo fica bem”. A revelação posterior de que o Superman desconhecido era na verdade o Clark Kent do presente tendo voltado ao passado é o que vende a cena para mim.


Mas a comunicação escritor e leitor não implica uma passividade do último. Morrison escreve suas histórias pensando em uma interatividade do leitor, não apenas na forma como várias interpretações podem ser pensadas, mas também por causa de sua metatextualidade e intertextualidade (essa, no contexto, se refere mais a forma como o Morrison ao escrever um personagem conhecido utiliza toda sua história de publicação). Por exemplo, em seu run no Batman, ele quis usar vários personagens e conceitos esquecidos, referências a histórias de todas as eras, na intenção de que o leitor fosse atrás dessas histórias, buscasse entender as referências que, longe de serem vazias, eram fundamentais para o entendimento da narrativa. Isso não se limita apenas ao que tange o Batman, mas Morrison apresentou a um público amplo ideias obscuras e de contracultura como o Dzogchen do budismo tibetano.

Encontramos em Grandes Astros: Superman um respeito enorme pela história e arquétipos do Superman, principalmente pelo Superman da Era de Prata, o Superman do Wayne Boring, Mort Weisinger e Julius Schwartz, editores de títulos do personagem em décadas como as de 50 e 60;

O capítulo do Jimmy Olsen é uma grande homenagem ao título Superman's Pal Jimmy Olsen, no qual em cada mês o fotógrafo ruivo passava por uma aventura esquisita que nem o David Lynch conseguiria sonhar. Umas das edições favoritas do Morrison é uma em que o Olsen se disfarça de mulher, e o crossdressing do personagem (algo bem cartunesco e inocente, claro... Pernalonga o fez várias vezes) é referenciado visualmente no começo do capítulo. Olsen aqui não é um garoto iniciante no mundo do jornalismo, inocente e ingênuo, mas um audacioso aventureiro que escreve uma coluna diária cuja proposta é fazer feitos absurdos em um dia, a coluna obviamente retorna  á estrutura do título que mencionei acima.


O capítulo da Lois Lane com os poderes do Superman tira sua proposta de uma capa e edição bem engraçada de Action Comics (a de número 279), na qual um Superman incrédulo vê a Lana Lang e Lois Lane saindo juntas com seus novos parceiros, Hércules e Sansão, prontas para se casarem com eles. O capítulo consegue estender a proposta e trata-a de forma engraçada e séria ao mesmo tempo, e Morrison consegue fazer milagres com as mais simples das histórias, a competição do Sansão e Atlas (o Morrison optou por não usar o Hércules) com o Superman pela afeição de Lois é hilária e termina da forma mais Era de Prata possível, com os três em uma guerra de braços.


Sim, o escocês fez seu dever de casa e tem um conhecimento enciclopédico da DC, seus personagens e suas histórias, no entanto outros escritores possuem o mesmo conhecimento, e o que diferencia o Morrison deles é o que ele faz com toda essa bagagem. Ela foi bastante útil na tarefa herculeana que é Grandes Astros: Superman; cada capítulo serve como uma história individual, que encapsula perfeitamente o que cada personagem e tropo representa. É um resumo dos oitenta anos de histórias do Superman.

No capítulo no qual Clark vai para Stryker visitar Lex Luthor para entrevistá-lo, nós temos a melhor síntese do Luthor como personagem, sua motivação, sua essência. O cientista do mal que, diferente das outras pessoas, não está enamorado pelo homem das estrelas, um alienígena que não sabe o que é ser humano. Morrison sabe que alguns escritores no objetivo de tornarem o Luthor mais fácil de simpatizar acabaram caindo no discurso do próprio. Ele demonstra como o Luthor é medíocre, e que o Superman, em sua grandiosidade, o lembra disso. O Luthor é narcisista e desprezível, completamente obcecado pelo Superman, e essa característica em específico é o motivo para a maioria dos momentos engraçados do capítulo. Isso e ele ter que desenhar as próprias sobrancelhas.


Os capítulos que exploram a Lois Lane também são fantásticos, com o objetivo de provar ela como alguém que o Superman se apaixonaria por e amaria. Mais do que a repórter intrépida conhecida nas adaptações, vemos seu coração e ela proporciona vários desses momentos intimistas que dão o toque doce a série, como ela perguntar ao Superman porque ele escolheu ela, ou o beijo na Lua, uma splash page fervilhante em toda sua beleza romântica; o Morrison claramente acredita nas imagens e ele pensa nas melhores para que Frank Quitely, sinceramente o artista mais genial que tive o prazer de admirar.


A DC é sortuda por ter o Quitely trabalhando para eles por mais de três décadas. Primeiramente, o seu traço é um dos mais reconhecíveis e, apesar da clara influência de Robert Crumb, é tão único; os detalhes como os poros e dobras na pele são sua marca registrada e elas elevam sua arte, por mais estranho que isso soe, e eu acredito que quando o assunto é design de páginas, o Quitely se iguala ao Jim Steranko, a forma como ele brinca com os quadros e sarjetas, como isso é utilizado em prol da história, é lindo, quadrinhos são uma mídia visual e quando isso é levado a sério na narrativa, o que temos são obras que criarão imagens que irão perdurar na memória e na história, e o Quitely nos dá várias imagens assim. 

O final é magnífico, o Superman forjando o coração artificial do Sol é a imagem que irá perdurar para mim. Engraçado como o Morrison bate na tecla do arquétipo do Superman como uma deidade solar: o próprio título é uma referência a isso (Grandes Astros), a causa de sua morte lenta e gradual é o envenenamento de suas celular pela exposição ao Sol, seu destino por séculos ser literalmente estar dentro do Sol para impedir que ele morra... Sutil não é, mas não precisa ser.


Estendendo-me mais um pouco, algumas coisas; o Morrison já deixou claro que vê superheroos como uma quase religião, seu “credo cósmico”, e sabemos de sua comparação entre Universo DC e mitologias (principalmente a grega, mas não apenas limitada a ela), então é bom ressaltar que o Superman respondendo a pergunta do Ultra Sphinx é tirado do Édipo respondendo a charada da esfinge, e o Superman realiza doze feitos, o que foi inspirado na história de Hércules (em mais uma prova dessa brincadeira com estruturas clássicas). Os doze feitos do Superman são:

1) Salvar a primeira missão tripulada para o Sol
2) Produzir o super-elixir
3) Responder a pergunta irrespondível
4) Acorrentar o cronóvoro
5) Salvar a Terra do Mundo Bizarro
5) Escapar do Mundo Bizarro
6) Criar vida
8) Liberar Kandor/curar o câncer
9) Derrotar Solaris, o Sol Tirano
10) Conquistar a morte
11) Construir um coração artificial para o Sol
12) Deixar a fórmula para fazer o Superman 2

O mundo de Grandes Astros: Superman é o mundo ideal que pode vir a ser. Morrison possui um pensamento utópico que me remete a Star Trek por causa desse otimismo com o progresso científico e tecnológico, a esperança na exploração espacial e em descobertas que mudam a forma como pensamos o universo. Nesse mundo existe um multizilionário só que do bem, em contrapartida ao capitalista do mal que é o Lex Luthor, a justiça não é falha, e até seres horrendos como o Solaris podem ser reabilitados. 

Continuando novamente o fio das ideias como meio de transformação da realidade, e o Superman como já sendo real, é interessantíssimo a história do Morrison na qual ele entrevista um homem fazendo cosplay do Superman, como ele estava tão obstinado e dentro do personagem que nosso careca escocês achou aquele momento perfeito, principalmente a forma como ele estava sentado (o que inspirou a capa da primeira edição), ele entendeu que o Superman, por causa de seu poder, podia ter o luxo de estar sempre calmo e relaxado, ele não era como os heróis absurdamente musculosos e tensos, que precisam provar algo. Esse momento, descrito como uma experiência xamânica pelo Morrison, foi bastante importante para a escrita de Grandes Astros Superman.

O décimo capítulo, no qual o Superman cria vida, é difícil de escrever sobre. É aqui que a metatextualidade do Morrison toma conta. O Superman criou o mundo Q (o nosso mundo?) para que Jerry Siegel e Joe Shuster o criasse. O máximo que posso fazer é descrever essa parte. E acho que você já pode chegar a conclusões por si mesmo depois de, nesse texto, ter compreendido a filosofia do Morrison.


Finalizo então com um dos melhores diálogos escritos pelo Morrison, onde o Jor-El diz a Kal:
Você lhes concedeu um ideal a que aspirar. Você encarna as aspirações mais elevadas. Eles hão de correr, de cambalear, cair, rastejar... e praguejar... e, enfim... hão de acompanhá-lo até o sol, Kal-El

Nota: 10

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