O Brasil tem investido cada vez mais em excelentes produções que abordam críticas sociais atuais, mostrando a realidade de muitos brasileiros que, muitas vezes, passam despercebidos ou, simplesmente, são ignorados por tantos outros. E essa premissa está ganhando cada vez mais destaque não somente no formato de filmes, mas, também, em séries/minisséries.
“Bom
Dia, Verônica” (2020) – leia a Crítica aqui – é um excelente exemplo de série
nacional que também aborda um tema atual muito importante, sobre a violência
doméstica contra a mulher. Na mesma esteira, “Sentença” (2022) é a mais nova
série nacional, lançada na Amazon Prime Video no dia 15 de abril. A produção é um excelente e inteligente drama/suspense
jurídico nacional que mostra seu potencial ao fazer uma crítica social sobre
(in)justiça, sistema judiciário, sistema prisional, encarceramento em massa e
desigualdade social no Brasil.
Na trama, Heloísa (Camila Morgado, de “Bom Dia, Verônica”, 2020) é uma renomada e idealista advogada criminalista de São Paulo que acredita que todos têm direito à defesa, seja lá qual for o crime que a pessoa tenha cometido e não importando a gravidade. Após anos de experiência, Heloísa conhece bem a complexidade do cárcere e do sistema penitenciário brasileiro, criado para que muitos apodreçam e sejam abandonados sem a assistência jurídica necessária. Os valores de Heloísa são desafiados quando um caso grave choca o país e ela se torna a advogada de Dinorah (Lena Roque), uma trabalhadora presa após ser acusada pela morte de um policial na comunidade em que ela mora. Com isso, Heloísa se encontra no meio de uma situação delicada envolvendo Zeca (Rui Ricardo Diaz), o líder da maior facção criminosa do país e as pessoas que o querem morto. Além do mais, por algum motivo, Zeca é um dos interessados em descobrir o responsável pela morte do policial.
Na
busca não só pela verdade do que aconteceu no caso de sua nova cliente, mas
também pelos mistérios dos crimes que envolvem sua própria família, Heloísa
precisa decidir se cruza ou não a linha tênue que separa o direito de defesa e
a possibilidade de cometer um crime imperdoável. Enquanto percorre essa
perigosa jornada, Heloísa precisa ainda lidar com um trauma de infância que
estava enterrado em sua memória, mas que, recentemente, tem ameaçado ressurgir
e revelar um segredo familiar doloroso. A situação sai do controle e a leva a
um novo dilema: seguir a lei ou cometer um crime para salvar quem mais ama.
Em apenas seis episódios, “Sentença” é uma combinação de drama com suspense jurídico que esmiuça as engrenagens do sistema judiciário brasileiro e leva o telespectador a conhecer a dura realidade de quem sofre com o descaso e abandono de pessoas negras e pobres dentro das instituições prisionais lotadas. E a trama nos é apresentada de forma intensa, mostrando um panorama geral de como algumas pessoas que foram injustiçadas pelo sistema, bem como pela desigualdade social, enfrentam o cotidiano dentro das instituições carcerárias.
Com
um roteiro rápido e enxuto (assinado por Paula Knudsen – que também é a
criadora –, juntamente com Cássio Koshikumo, Davi Kolb, Francine
Barbosa, Maria Shu, Luíza Fazio e Janaina Tokitaka), “Sentença”
não perde tempo em ficar desenvolvendo tanto os personagens, podendo se
aprofundar mais na história e em como a narrativa afeta cada personagem
envolvido na trama. Essa fluidez permite que a série, dirigida por Anahí
Berneri e Marina Meliande, possa percorrer e explorar melhor o enredo
que se propõe a contar, sem arcos e subtramas demais e sem perder muito tempo
em um determinado personagem – além de Heloísa, que a protagonista. Em outras
palavras, “Sentença” é uma série objetiva, que conta uma história sem rodeios,
de forma direta e rápida, sem perder o foco principal.
Os arcos principais de “Sentença” se focam em Heloísa, seu trabalho e sua família – casada com o promotor Pedro (Fernando Alves Pinto) e no filho adotivo deles Hugo (Victor Hugo Martins) –, em Zeca, o líder da facção criminosa que comanda seu império de dentro da prisão, com a ajuda da esposa e também advogada Moira (Heloísa Jorge), e em Dinorah, presa pela acusação de homicídio e esperando julgamento. Entrementes, o promotor Pedro e a investigadora Flora (Samya Pascotto) investigam uma grande organização criminosa, descobrindo um certo envolvimento com o trabalho de Heloísa na defesa de Dinorah, e, também, o interesse de Hugo em querer descobrir quem são seus pais biológicos. A série manuseia e explora muito bem essa transição entre os arcos, fazendo um desenvolvimento amplo e dinâmico entre eles, sem ficar cansativo.
“Sentença”
tem uma bela e excelente cenografia. A série estava originalmente prevista para
ser filmada em São Paulo, mas, por conta da atual pandemia, as locações e
ambientação foram transferidas para Montevidéu, no Uruguai. A produção tomou
essa decisão por questão de segurança, haja vista que a capital Uruguaiana
estava mais segura para rodar a produção.
O grande destaque de “Sentença” é o excelente elenco. Quem rouba a cena é Camila Morgado que, com um enorme talento, entrega uma atuação impecável e convincente. Morgado apresenta, com maestria, uma advogada idealista, determinada, focada e decidida, mostrando um grande conhecimento das leis e como transitar pelo sistema judiciário. Desde o primeiro episódio, a trama já estabelece o quão forte sua personagem é, não medindo esforços para fazer justiça, interpretando uma mulher que não abaixa a cabeça pra ninguém e que não leva desaforo, seja de quem for; e sempre com decoro e respeito, de forma extremamente profissional.
Além
de Camila Morgado, a série também conta com as participações de Fernando Alves
Pinto, Heloísa Jorge, Lucinha Lins, Rui Ricardo Dias, Lena
Roque, Bárbara Colen, Samya Pascotto, Marcos Alberto
Filho, Victor Hugo Martins e Leandro Daniel. Por conta da pandemia,
todo o elenco de “Sentença” foi escolhido através de castings virtuais.
Para se preparar para a produção de “Sentença”, o elenco realizou várias pesquisas, a fim apender sobre o universo jurídico e sobre o sistema criminal e carcerário brasileiro. Para interpretar Heloísa, Camila Morgado procurou uma advogada criminalista para prestar assistência jurídica. Além disso, Morgado também leu vários livros sobre o sistema carcerário brasileiro e se inspirou na atuação de várias atrizes de diferentes produções policiais para melhor compor sua personagem.
Outro
ponto curioso sobre a produção de “Sentença” diz respeito acerca das cenas de
sexo. Para preparar os membros da equipe nesse aspecto, uma coreógrafa de sexo
foi contratada para ensinar os artistas a criarem intimidade durante as
gravações dessas cenas.
Talvez o único ponto que faz “Sentença” dar uma escorregada é em relação ao “juridiquês”, ou seja, o uso excessivo (e, às vezes, complicado) de termos e expressões jurídicas. Realmente, é importante que a linguagem jurídica seja usada na série em tela, pois se trata de uma história que se passa nesse meio, óbvio. Mas, desenvolvê-la por completo sem se simplificar pode acabar fazendo com que os mais leigos fiquem um pouco perdidos sobre o argumento e desenvolvimento da produção. E a ansiedade de apresentar um vasto conhecimento jurídico fez com que a série cometesse alguns erros, tal como a contagem e a divulgação dos votos dos jurados ao final do Tribunal do Júri. Salvo engano, este pode ser considerado o erro mais grosseiro da produção.
“Sentença”
é uma série ousada, intensa, impressionante e inteligente que discute temas
atuais importantes da nossa sociedade: os bastidores do sistema judiciário, os
complexos problemas da justiça brasileira, o sistema prisional brasileiro, a
desigualdade social do país, adoção, maternidade, comunidade LGBTQIA+ e crime
organizado, bem como as complexas questões morais. Além disso, a série faz um
panorama geral de como o sistema judicial e prisional funcionam, através dos
fóruns, escritórios de advocacia e penitenciárias. É uma série criminal muito
interessante, cheia de reviravoltas e que chega próximo de nossa realidade;
apesar, é claro, de ser uma produção inteiramente de ficção, além de incluir
vários elementos narrativos para desenvolver a dramaticidade da trama.
A série tem um excelente roteiro, criado, dirigido, escrito e protagonizado majoritariamente por mulheres; além de ser muito bem contado também, pois dá ao telespectador a oportunidade de ver uma história atual com temas relevantes, delicados e polêmicos. E a produção consegue entregar um material que, com extrema facilidade, consegue desenvolver e explicar toda a história que se propõe a contar sem se prolongar e se arrastar demais; incluindo, também, o desenvolvimento de seus personagens. Levando tudo isso em conta, “Sentença” é uma excelente série de grande qualidade.
“Sentença”
pode ser considerada uma produção um pouco genérica, pelo fato do enredo se
desenrolar rápido e simplificado demais; mas isso ocorre pela praticidade que
se exige para que a trama seja contada dentro dos moldes que a série se propõe
a contar, dentro do formato de seis episódios de até 45 minutos. Mas, esse ponto
não é nenhum demérito para a produção, que, com certeza, foi um ótimo acerto da
Amazon Prime Video.
“Sentença” está disponível na Amazon Prime Video.
Nota: 9.0
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