Batman de Matt Reeves é o filme que o herói tanto precisava e merecia

Depois de anos esperando e alguns adiamentos, o novo filme do Batman que conta com a iteração de Matt Reeves do personagem finalmente chegou aos cinemas. E não é exatamente uma surpresa que o filme foi tão bom como foi. O longa é resultado de um trabalho primordial de Matt Reeves que fez o seu melhor para pensar além das convenções do gênero e entregar um filme realmente diferente e que possa agradar tanto aos fãs do personagem quanto introduzi-lo a um público novo. E não é só a visão do Reeves que torna o filme o triunfo que é, mas também a cinematografia de Greig Fraser, os figurinos, as atuações, o design de som e praticamente todas as partes técnicas, que são um primor, e claramente o roteiro espetacular de Reeves e Peter Craig.

Logo na primeira cena do filme temos um vislumbre do quão perturbador é o personagem. Antes de assassinar o prefeito de Gotham, o Charada é praticamente um stalker, vigiando o movimento dentro da mansão, vendo o seu filho brincar, antes de atacá-lo, e mesmo dentro da mansão ele ainda demora um pouco antes de assassinar a sangue frio o prefeito, ficando atrás dele de forma silenciosa, o observando. Já é possível imaginar o tipo de personagem que o Charada é. Com certeza não é a versão galhofa e cômica do Jim Carrey, ou a versão irritante, esnobe e pedante dos jogos Arkham. É um Charada que olhou muito tempo para o abismo, e o abismo olhou de volta para ele. É uma versão que se inspira no Assassino do Zodíaco e no Jigsaw e que trás desses personagens o tipo de sadismo que daria calafrios a qualquer um. Com o início fenomenal, temos a promessa de que o filme só tende a melhorar a partir daí.


A sequência inicial do filme é simplesmente linda. Matt Reeves consegue apresentar Gotham City e Bruce, os dois personagens principais do filme, de forma magnífica. A narração de Robert Pattinson em uma voz monótona justaposta com as imagens de Gotham na noite de Halloween criam uma atmosfera intoxicante que deixa o espectador investido no filme logo de cara. Isso é em parte devido ao design da cidade, que tem partes góticas com arquitetura vitoriana, partes uma metrópole futurista com um centro movimentado cheio de letreiros de neon, e partes uma cidade grande moderna com prédios abandonados e decadentes. Percebe-se pela narração do Bruce sobre "[o] medo ser uma ferramenta" e uma Gotham suja e decadente de noite cheia de criminosos, que o filme será sombrio. Mas a escolha de um tom mais sério e menos "divertido", o mais frequente em filmes de heróis, não vem de uma vontade infanto-juvenil de transformar um filme sobre pessoas que vestem cueca em cima da calça em "adulto", mas sim de uma escolha estilística que é condizente com o personagem do Batman e que pode fazer jus ás suas melhores histórias. Reeves se inspira em "Ano Um", com uma história pé-no-chão e calcada na realidade, em "Ego", com uma história que se preocupa em analisar o estado psicológico de seu protagonista, e "O Longo Dia das Bruxas", com uma história que foca bastante em uma investigação. Todos esses elementos são usados primorosamente pelo Reeves e mostra que ele é fã dos quadrinhos dos personagem e que sua escolha de fazer um filme "realista" não vem por um desconhecimento ou descaso com as HQs, como já foi visto por alguns diretores desse gênero que decidiram ignorar as HQs de forma vergonhosa como o Bryan Singer (franquia X-Men).

A cena da gangue da pintura facial no metrô também foi fenomenal em sua introdução ao Batman. Tínhamos visto apenas o Bruce sendo o Drifter rondando as ruas de Gotham antes, mas a introdução do Batman com seu uniforme no mais glorioso estilo toma parte aqui. Há toda uma preparação sonora antes de conferirmos o Batman visualmente. Suas botas fazem um barulho estranho que pode ser comparado apenas ao barulho que espora de botas fazem, o que pode indicar uma inspiração em westerns. O barulho claramente é deliberado para amedrontar os criminosos antes do combate. E é então que vemos o Cavaleiro das Trevas lutar com a gangue inteira em uma cena de ação incrível. As lutas são cruas, o uso de gadgets do Batman é bem feito e mostra que o herói não é um tanque de guerra que vai destruindo tudo em seu caminho como a versão anterior do Ben Affleck, mas um que calcula seus próximos movimentos e sabe montar estratégias. 

A visão que o Matt Reeves tem do personagem é um sopro de ar fresco dentre tantas outras adaptações do personagem. Aqui não temos o playboy que leva um estilo de vida luxuoso, mas sim um Bruce recluso e que não tenta nem sequer ter uma vida pública, inspirado no Kurt Cobain e no filme Últimos Dias de Gus Van Sant, um homem traumatizado que se encontra sempre em uma Mansão Wayne decrépita ou na solitária Batcaverna. Ele devota todo seu tempo em ser o Batman, e isso é demonstrado de forma genial em uma das melhores sacadas do filme: o Bruce escrever um diário e ver gravações de suas empreitadas como o herói que vem de câmeras minúsculas imbuídas em lentes de contato porquê ás vezes sua memória fica embaraçada. O personagem escrever o diário pode ser visto como algo tirado descaradamente de Taxi Driver (uma inspiração explícita do Reeves), mas a escolha não foi uma superficial. Bruce claramente não dorme e passa noites inteiras sendo o cruzado encapuzado, e a falta de sono poderia resultar nisso. Isso claramente nos mostra que o Bruce não se importa com mais nada do que sua cruzada, sua guerra contra o crime. Esse não é um homem mentalmente bem, e Reeves consegue explorar esse fato com bastante nuances e de forma empática. Bruce nunca é mostrado como alguém insano, mas como alguém que deixa suas cicatrizes, fantasmas e traumas o controlarem. 


Mas não é só a visão de Matt Reeves que dá o sopro de vida necessário pros personagens no longa, mas a trilha sonora de Michael Giacchini consegue dar personalidade a eles também, complementando a direção e atuação, e eleva momentos-chave do filme, como toda boa trilha sonora deve fazer. O tema do Charada combina perfeitamente com o personagem, já que é soturno e sinistro e captura com precisão o tom trágico do personagem e a brutalidade de seus métodos. O tema do Batman entende o personagem e sua essência, com uma parte que representa o Batman em si, que é épica e condizente com um vigilante em uma cruzada contra o crime, e uma parte que representa o Bruce, que é melancólica ao mesmo tempo que é esperançosa, perfeita para um órfão que aparentemente perdeu tudo, mas que sabe que ainda há uma luz no fim do túnel, que ainda há luz nas trevas. O tema da Mulher-Gato captura a essência do personagem e sua moral cinza, ela é uma ladra mas mesmo assim está do lado do Batman e tenta fazer a coisa certa, apesar de ter interesses próprios. É o tema ideal para uma femme fatale, já que você consegue distinguir a inspiração em temas de filmes noir.

Há algumas reclamações do público geral e de alguns críticos de que o filme não tem humor. Felizmente o filme não tenta inserir uma piada a cada minuto ou tenta colocar uma após uma cena dramática pra tentar aliviar o público, mas o filme possui um humor equilibrado e não tem prova melhor do que o personagem do Pinguim. Colin Farrell interpreta um estereótipo de mafioso ítalo-americano que é canastrão e piadista, mas que pode ser intimidante caso a ocasião necessite. O personagem faz ótimas piadas nas cenas em que aparece, apesar de não serem tantas, como é o caso do "No hablas español?". Não é um humor forçado ou que tenta impressionar o público, mas uma que vem naturalmente, com o Pinguim se encontrando encurralado pelo Batman e pelo Gordon e tentando deixar a situação menos tensa com seu humor. Enquanto Carmine Falcone, interpretado de forma brilhante pelo John Tuturro, é chefão mafioso sério e de respeito no melhor estilo O Poderoso Chefão, o Pinguim é um mafioso mais malandro e cômico no estilo Os Bons Companheiros ou The Sopranos, e por causa disso ele se tornou um dos personagens que eu mais gostei no filme. 


Ao mencionar o Pinguim, sou lembrado em memórias vívidas a sequência simplesmente genial da perseguição do Batmóvel. Não é sempre que eu consigo recordar cenas de filmes em seus mais nítidos detalhes, mas essa sequência é um primor que ela merece um ensaio inteiro dissecando e analisando seus pontos fortes e porquê é um exemplo que deve ser seguido por outros filmes de heróis em como se fazer uma sequência de ação de respeito. A edição que consegue deixar o rimo frenético sem sacrificar o entendimento da audiência sob o que está acontecendo, o design de som que faz com o que o Batmóvel seja um monstro, com o ronco do motor sendo bestial e animalesca, e a direção do Reeves que novamente, faz o filme ser o que é.  

Um dos principais temas do filme é vingança, e ele é eximiamente utilizado no filme para que vários personagens e eventos tenham como vingança seu principal mote. Já é óbvio como o Batman é ligado diretamente com o conceito de vingança, mas ele consegue evoluir e se tornar mais do que isso, como demonstrado no final do filme, onde ele abraça conceitos melhores como justiça e esperança ao dizer "Vingança não vai mudar o passado. Não o meu e nem o de ninguém. As pessoas precisam de algo melhor. Elas precisam de esperança." A Mulher-Gato, interpretada pela talentosíssima Zoe Kravitz em outra interpretação sublime do filme, tem a vingança como um de seus principais motivadores, isso após a morte de Annika, sua amiga/possível amante, com a morte afetando ela profundamente que depois ela tenta se vingar da morte de sua mãe ao matar Carmine Falcone, seu pai e assassino da mulher na qual teve uma filha. Selina não parece superar essa vontade totalmente e com a sua saída de Gotham no final, há uma deixa para que a sequência vejamos sua evolução. E com o Charada, interpretado pelo Paul Dano que consegue interpretar perfeitamente um psicopata instável, apesar de alguns momentos vergonha alheia (isso sendo culpa do roteiro), vemos a vingança ser o motivador de toda sua raiva contra o mundo já que ele se viu injustiçado com o programa de renovação de Thomas Wayne e as elites e governo de Gotham, que o negligenciaram. 


Batman não é o filme médio de super-heróis que o público se acostumou em assistir. Ele não procura fazer espetáculo apenas pelo espetáculo, ou de preparar terreno para outros mil filmes e séries spin-off, é um filme que vem de um genuíno amor pelo personagem e suas histórias, e com uma visão única do mesmo que tenta achar o meio-termo entre a história clássica do personagem e o fator da inovação. É um filme que tenta explorar diferentes questões, como a corrupção em órgãos governamentais, corrupção das elites, milícias digitais e outros, e apresenta temas sólidos. No fim Batman ficará consolidado como não só um dos melhores filmes do herói, mas um dos melhores filmes do gênero, já que é um blockbuster inovador e criativo em um oceano de blockbusters repetitivos e que tem pouco a oferecer.

Nota: 10

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