Nos últimos tempos, o excelente diretor Mike Flanagan tem ganhando destaque ao apresentar brilhantes produções, adaptando algumas de grandes obras literárias: as duas excelentes antologias da “Maldição” – “A Maldição da Residência Hill” (2018) e “A Maldição da Mansão Bly” (2020), ambas produções originais da Netflix. Além disso, Flanagan também dirigiu outras grandes produções, tais como “Doutor Sono” (2019), “Jogo Perigoso” (2017) e “Hush – A Morte Ouve” (2016) – todas estão disponíveis na Netflix.
O
mais novo trabalho de Flanagan é “Missa da Meia–Noite”, produção original da
Netflix e que estreou na plataforma no último dia 24 de setembro. Mike Flanagan
e Trevor Macy são os responsáveis por criarem a minissérie, que foi encomendada
pela Netflix em 2019. Além disso, Flanagan também assina a produção como
diretor, produtor executivo e roteirista, juntamente com os roteiristas
James Flanagan, Elan Gale, Jeff Howard e Dani Parker.
A nova minissérie mistura horror e religião para fomentar o quão perigoso pode ser o fanatismo religioso em meio a eventos misteriosos, vistos como milagrosos sob o aspecto de pessoas mais fervorosas, bem como pessoas cegas pela fé podem ser facilmente manipuladas e levadas à destruição, além de misturar dramas familiares e fazer uma reflexão sobre perdão e intolerância.
“Missa
da Meia–Noite” narra a história de uma comunidade pesqueira extremamente
católica que vive isolada em uma ilha próxima à costa (a cerca de 50
quilômetros do continente), com 127 habitantes. Riley Flynn é um empresário de
Chicago que retorna para Crockett Island depois de passar quatro anos preso por
dirigir bêbado e matar uma mulher atropelada. Com isso, Riley perde a fé e tem
que conviver enfrentando seus próprios demônios constantemente, pois todos os
dias ele vive atormentado pela imagem do fantasma da mulher que ele atropelou.
No mesmo dia, o carismático padre Paul Hill também chega à Crockett para substituir o antigo e idoso monsenhor Pruitt, que liderava a paróquia local há décadas, mas, por circunstâncias suspeitas, ficou doente e se ausentou do cargo. O novo sacerdote conquista toda a comunidade de Crockett desde o primeiro domingo que começa a congregar, até mesmo aqueles que não são frequentadores da igreja – principalmente Riley, que, por insistência dos pais, acaba indo à missa juntamente com eles. Com isso, Riley pede auxílio do sacerdote, para que o ajude a recomeçar a vida e para enfrentar os problemas do passado.
Tão
logo com a chegada de Riley e Paul à Crockett, fenômenos misteriosos começam a
acontecer na cidade. Sem conseguir encontrar explicações para os estranhos
eventos, a população de Crockett fica desesperada por fé e busca abrigo com o
novo padre, que acende o fervor religioso dos habitantes com maior intensidade,
usando uma oratória cada vez mais calorosa com o passar do tempo.
As coisas ficam mais impressionantes ainda quando o padre começa a realizar seus próprios milagres dentro da igreja, causando uma comoção ainda maior entre os moradores. Antes abalada religiosamente, agora a comunidade local encontrou conforto espiritual com o novo pároco de forma tão intensa que os cidadãos se entregam de corpo e alma para a igreja.
Mas,
qual será o preço de tantos milagres assim? Os atos sagrados do padre são,
realmente, uma benção divina? A que custo os moradores de Crockett devem se
entregar tão cegamente assim? O bilhete de entrada para a suposta salvação
começa com a tão somente fé cega da comunidade local, que deve se entregar à
igreja sem hesitar. Entre e aceite a benção. Do contrário, os indignos serão
julgados e condenados.
Depois de Flanagan explorar fantasmas com as duas minisséries da antologia da Maldição, agora o cineasta usa de uma narrativa de horror e de elementos de histórias de terror (que não vou revelar aqui) como mecanismo para explorar como o fanatismo religioso pode transformar uma calma e bondosa comunidade local em um lugar violento e intolerante, através de falsos milagres.
“Missa
da Meia–Noite” ainda faz uma reflexão de como falsos profetas se aproveitam da
fé cega para manipular fiéis fervorosos e como esses líderes religiosos se
utilizam do medo alheio perante o desconhecido para controlar as pessoas. Nesse
sentido, fica claro que o medo é a melhor ferramenta para manipular, controlar
e oprimir pessoas. É com esse punho de ferro que o padre Paul direciona a
população de Crockett, através de questões como luto, perdão e ressurreição
espiritual.
Somado a isso, o padre tem o total apoio de Beverly Keane, pois ela é a religiosa mais fervorosa da ilha (mesmo sendo extremamente preconceituosa e intolerante), conseguindo influenciar de forma incontestável os habitantes da cidade com passagens da Bíblia. Beverly serve como ferramenta poderosa para conseguir pressionar cada vez mais os moradores a seguir a congregação sem questionar nada, julgando e condenando ela mesma aqueles que cometeram erros no passado, os que não seguem e servem cegamente os ensinamentos de Paul e, principalmente, aqueles quem ela considera indignos.
Isso
reforça ainda mais como o fanatismo religioso da comunidade, aliado ao
preconceito e à intolerância, pode ser perigoso e destrutivo, principalmente
entre aqueles que se entregam com fé cega. Seguir sem questionar é a melhor
maneira de se deixar manipular e de fomentar a maldade nas pessoas, inspirando
o ódio e destruição entre seres humanos;
principalmente porque o mau uso da religião inspira medo (ainda mais o medo do
desconhecido) e toca nas feridas das pessoas – seja em relação ao vício ou aos
erros do passado. Afinal de contas, quem já errou quer perdão; e a ilha de
Crockett está repleta de pessoas que erraram e anseiam pelo perdão. Destaque, também, para o preconceito e intolerância religiosa contra as pessoas que são de outra religião; outro ponto abordado na minissérie.
Com sete episódios – cada episódio recebeu um título de um dos 66 Livros da Bíblia – “Missa da Meia–Noite” começa de forma um pouco arrastada (principalmente por causa da longa duração de 1 hora em cada episódio e de diálogos um tanto monótonos), precisando dos dois primeiros episódios para apresentar os personagens e comunidade de Crockett em si.
Mas,
engana–se quem pensa que a minissérie é só mais um drama familiar parado: de
forma bem sutil, Flanagan vai plantando os elementos de uma força malévola
ainda maior enquanto desenvolve os personagens e constrói, aos poucos, uma
narrativa de horror em volta daquele ambiente isolado do resto do mundo – o
lugar perfeito para manipular um grupo relativamente pequeno sem interferência
externa.
Flanagan consegue desorientar o espectador ao tirar a atenção deste acerca dos fenômenos inexplicáveis e conduzi–lo para entre os problemas individuais dos habitantes de Crockett. E Flanagan consegue explorar cada personagem e as várias motivações pessoais de cada um ao longo dos episódios conforme nos são apresentados. Ao mesmo tempo, a minissérie se utiliza desses fenômenos estranhos inicialmente desconhecidos como ferramenta para causar discórdia entre as pessoas mais fervorosas religiosamente e aquelas que ainda relutam a seguir cegamente que tudo aquilo são atos milagrosos.
O
círculo vai se fechando em cada episódio e o embate entre os moradores de
Crockett vai tomando proporções cada vez mais violentas e extremistas à medida
que outros fenômenos aparecem. Com isso, a deturpação da palavra de Deus se
intensifica mais febrilmente sobre a população, fazendo com que as pessoas
percam as rédeas sobre opiniões próprias e passem a manifestar um alto grau de
maldade humana contra aqueles que não estão do seu lado e que não estão
seguindo cegamente os mesmos preceitos religiosos que eles. Conforme mais
fenômenos ocorrem em Crockett, mais violentas ficam as emoções entre os
moradores.
Flanagan consegue ser eficaz ao conduzir uma crítica social (de forma bem filosófica) acerca do fanatismo religioso, usando o horror sobrenatural como pano de fundo (juntamente com elementos do terror) para expor até onde pode chegar a maldade humana perante falsos milagres e falsos profetas (sob o pretexto da salvação); e o cineasta faz tudo isso sem desrespeitar a religião e/ou os preceitos religiosos. E isso fica explícito na forma como as pessoas de Crockett rapidamente creem nos tais “milagres” que ocorrem, principalmente os feitos realizados pelo padre Paul; o que leva aos moradores a terem atitudes radicais (a ponto serem agressivas e maldosas) tão logo que presenciam os sinais divinos, somente para serem salvos o mais rápido possível.
E
mais: Flanagan assume a forte responsabilidade, sem ultrapassar limites, ao abordar
temas como perdão, culpa e intolerância para justificar que somente a graça
divina pode salvar aqueles com fé cega. E é neste ponto que entra o uso nocivo
da palavra bíblica, forte ferramenta de manipulação para pressionar e oprimir
aqueles que ainda se mantém céticos, se atrevendo a questionar os fenômenos e
acontecimentos que não podem ser explicados por uma pequena comunidade carente
de liderança religiosa. Tal graça divina, deturpada de forma extremista pelos
líderes religiosos que a oferecem, só pode ser concedida para aqueles que
seguirem sem hesitar e, pior, com uma promessa de recompensa.
Quem já assistiu as duas antologias da Maldição, vai reconhecer alguns rostos em “Missa da Meia–Noite”, como Kate Siegel, Rahul Kohli, Henry Thomas, Annabeth Gish, Alex Essoe, Robert Longstreet e Samantha Sloyan – além de contar com uma participação especial de Carla Gugino, que não apareceu fisicamente, mas sua voz pode ser ouvida no começo do primeiro episódio, interpretando a juíza que condena Riley à prisão. O elenco também conta com a participação de Hamish Linklater (de “Ao Vivo de Bagdá”, 2002) e Zach Gilford (de “Uma Noite de Crime”, 2013).
Por
fim, os mais atentos perceberam que “Missa da Meia–Noite” tem ligações (indiretas) com outras
produções de Flanagan, apesar de serem produções independentes: “Midnight Mass” é o livro que a personagem
Maddie Young (personagem de Kate Siegel, esposa de Flanagan) escreve em “Hush – A Morte Ouve” (2016) e, também, um exemplar do livro aparece em “Jogo Perigoso” (2017), filme baseado em uma obra do escritor Stephen King.
“Missa da Meia–Noite” está disponível na Netflix.
Nota: 9.5
Postar um comentário