"O que ficou para trás" navega bem na onda de Corra! e Nós ao trazer uma temática social de forma extremamente crítica.

O que ficou para trás (His House) é um thriller de terror que vem ocupando posição de destaque dentre os filmes mais assistidos no Brasil, após ser aclamado pela crítica especializada. Com roteiro e direção de Remi Weeks, a obra teve sua estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance, em janeiro deste ano, e recentemente chegou ao catálogo da Netflix.



O filme conta a história de Bol (Sope Dirisu, Humans) e Rial (Wunmi Mosaku, Lovecraft Country) um casal de refugiados do Sudão do Sul, um país do nordeste africano arrasado pela guerra. Com o objetivo de alcançar a Europa e terem suas vidas transformadas, eles cruzam o Mediterrâneo em uma embarcação extremamente lotada e sem nenhuma segurança e acabam passando por um trágico naufrágio. Muitos perdem a vida durante o incidente, inclusive a filha do casal, o que provoca traumas profundos.

A Inglaterra dá asilo aos dois, que permanecem por um tempo em um centro de detenção e logo no início do longa já são transferidos para uma espécie de abrigo provisório em Londres, enquanto aguardam a concessão de um visto de permanência no país, que está atrelado ao cumprimento de uma série de regras impostas e monitoradas de forma regular e rigorosa pelo serviço social inglês na figura de Mark (Matt Smith, The Crown).

A casa oferecida pelo governo "benevolente", na verdade está em condições degradantes. Ratos, baratas, entulhos, iluminação precária e um auxílio financeiro miserável parecem uma humilhação a parte. Ainda assim, o casal enxerga aquilo como uma nova oportunidade, um recomeço. Eles só não esperavam que a casa abrigasse algo além dos dois.

Bol tenta se adaptar a vizinhança a todo custo e passa a se vestir como os ingleses, falar como eles, embora isso não mude a presença sobrenatural existente na casa. Ele não demora a entender que as entidades são um reflexo de seus traumas, medos e sentimento de culpa crescente. Rial, por sua vez, tem mais dificuldade e não se sente pertencente de fato a aquele lugar, se mostrando reticente em abrir mão de sua cultura para ser aceita ali.

O que ficou para trás é um terror no melhor estilo cult que traz uma crítica social substancial. O drama dos refugiados é explorado com profundidade dando destaque às dicotomias que segregam, aterrorizam e dizimam pessoas no mundo inteiro.

A história não economiza no sobrenatural. O terror não vem por sugestão. Temos assombrações que não se privam de aparecer, se fazerem ouvidas e de tocarem os vivos, o que pode ser de fato angustiante para quem não tem muita afinidade com o gênero. O thriller é quase uma experiência sensorial que instiga e abala ao mesmo tempo. Aos mais sensíveis, vai um alerta: não assistam à noite. O terror vem ainda carregado de apropriação cultural, com a apresentação da figura mística do “apeth” ou bruxo da noite, que traz uma voz sombria e um visual ainda mais assustador.

Sope Dirisu faz um belo trabalho, mas tenho que enaltecer aqui a atuação de Wunmi Mosaku. Sua personagem interpretada de forma intensa evidencia o quanto a vida real é aquilo que de fato a assombra e essa é a grande faceta da trama. O mundo a feriu tanto e deixou tantas marcas devastadoras, que não existe entidade sobrenatural capaz de genuinamente assustá-la. Essa mensagem não só arrepia como também é um soco no estômago.



Matt Smith, apesar de interpretar um papel coadjuvante na trama, se destaca mesmo que em poucas cenas ao criar um ambiente de extrema tensão. Mark, seu personagem, representa a maneira como a sociedade em geral apenas assiste a alguns acontecimentos e ainda por cima tenta passar uma visão otimista daquilo que é incontestavelmente trágico. Ao colocar em risco por inúmeras vezes a permanência do casal no abrigo provisório, ele se torna por vezes o verdadeiro terror personificado da história.

O filme é compacto, ágil, exala representatividade e faz muito com pouco. Ainda assim, de alguma forma senti que o enredo pecou a partir da segunda metade ao entregar de forma didática demais os fatos antes nebulosos e intrigantes. As revelações vêm em turbilhão e o clímax é perdido como num sopro. O terror até tem uma reviravolta de impacto, porém o desfecho torna quase que opaco o esforço de um início tão promissor e bem desenhado. 

É quase como se a história tivesse nadado e morrido na praia. Veja bem, QUASE. Porque não dá pra desmerecer a ousadia do roteiro e a apresentação de elementos únicos e formidáveis que tornam esse filme merecedor de ser visto. Definitivamente são novos tempos para o gênero terror.

 

Nota: 8,0

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