Série baseada na obra de Matt Ruff sabe explorar bem os principais elementos do horror cósmico de H.P Lovecraft ao mesmo tempo em que passa suas próprias mensagens sobre preconceito e aceitação.
Sinopse: Na década de 1950, nos Estados Unidos, Atticus Black se junta a sua amiga Letitia e seu tio George em uma viagem em busca de seu pai desaparecido no sul do país sob forte segregação racial.
H.P Lovecraft é um dos escritores de horror moderno mais celebrados por suas inegáveis contribuições para o gênero de terror/ficção científica do mundo literário, no entanto, é também conhecido pelo teor racista em diversas de suas histórias. Tendo isso em mente, o escritor Matt Ruff escreveu o livro Território Lovecraft no qual pessoas negras são as protagonistas e vivem diversas aventuras baseadas nos escritos de Lovecraft, algo que o autor certamente não gostaria. A série da HBO criada por Misha Green pega essa premissa de Ruff e faz uma série que não apenas honra os dois autores, como também é recheada de fortes mensagens sobre preconceito, família, dever e segregação.
A série inicia-se com um mistério envolvendo o desaparecimento do pai de Atticus Freeman (Jonathan Majors) em circunstâncias suspeitas. Então, com a ajuda de seu tio George Freeman (Courtney B. Vance) e sua amiga Letitia Lewis (Jurnee Smollett), eles viajam pelo país em busca de pistas sobre a localização de Montrose (Michael K. Williams). A busca pelo pai de Atticus é recheada de perigosos tanto humanos quanto sobrenaturais e a cada nova descoberta, os protagonistas descobrem que o mundo não é exatamente como eles pensavam. Além de lidar com tais novidades, eles devem enfrentar o forte racismo presente nos EUA naquela época com leis segregacionistas e uma sensação constante de perigo.
Logo no episódio piloto, eles encaram uma situação que por si só dita o tom do show, numa parada para um almoço numa cidade pequena, eles são perseguidos por autoridades racistas e devem sempre correr contra o tempo para salvar suas vidas. Essa é uma sensação que permeia os dez episódios da trama com diferentes temáticas sendo exploradas a cada novo capítulo para fazer jus tanto ao aspecto de terror quanto ao comentário social pretendido. Diferentes vertentes do horror são exploradas, temos monstros, criaturas espaciais, fantasmas, body horror, mas sem dúvida, as pessoas são as maiores responsáveis pelo horror em que vivem.
Essa é uma sacada inteligente do roteiro, pois mostra que apesar de todas as monstruosidades existentes, o ser humano pode ser extremamente cruel e não há criatura mística que chegue aos pés. Essa falha humana é sentida nos protagonistas com cada um tendo tanto virtudes quanto defeitos, inclusive não é uma série que pega leve com os mocinhos, tanto eles quanto os vilões recebem um tratamento justo por suas motivações na maior parte do tempo. Um fato curioso dessa falha, é que todos os personagens centrais possuem problemas familiares com figuras paternas, algo que define a vida deles tanto no passado quanto no presente.
Cada um ou está tentando não ser igual aos pais ou é igual a eles, mas sem dar -se conta. É o que acontece com Atticus, Letitia, Monstrose e Christina (Abby Lee Kershaw), todos têm problemas com suas figuras paternas/maternas e tentam provar a si mesmos que não. Temas como violência doméstica, homofobia, alienação parental, responsabilidade afetiva e respeito são bem trabalhados dentro de cada episódio com a direção extraindo o melhor de cada ator.
Aliás, vale destacar que nenhum personagem é deixado de lado, o roteiro de Misha Green explora cada particularidade do âmago dessas pessoas ao longo da narrativa e cada um tem anseios específicos que nem sempre são bons, mas a série tenta demonstrar que ninguém é perfeito e às vezes, nos tornamos aquilo que mais criticamos sem perceber.
A crítica ao segregacionismo racial da época é muito bem escrita e encaixa-se a diversos outros segmentos da trama. Por exemplo, toda a parte que envolve a descoberta de uma sociedade de feiticeiros brancos é muito perspicaz em usar a magia para demostrar que até em questões de misticismo, há um desequilíbrio na balança de poder e que os negros também são excluídos ou usados como objetivos de sacrifício. A série pega esse plot e o subverte, fazendo com que a família de Atticus e Leti passem a entender mais sobre feitiços e usando isso como forma de empoderamento a fim de que possam ser livres com a ajuda dessa magia.
Um dos melhores episódios da temporada foca-se no desejo de Ruby (Wunmi Mosoka) em conseguir um bom emprego, mas sofrendo com isso por ser negra. É então que a mágica entra em cena, permitindo a personagem desfrutar dos privilégios de uma pessoa branca e finalmente seja tratada como um “ser humano digno”. Todavia, por mais que seja encantador, esse desejo não passa de uma situação temporária e no fim, ela ainda ser lidar com as questões de ser uma mulher negra numa sociedade racista e machista. Montrose também deve aprender a lidar com seus próprios demônios, pois passou a vida toda sendo alguém ruim com o filho, mas no fundo, esse ódio era fruto da frustação que ele tinha consigo mesmo e descontava na família por covardia.
Atticus guarda mágoa do pai por esses motivos, mas no fundo, quer que eles se dêem bem apesar de tudo. Ele também guarda inúmeros segredos sobre seu tempo como soldado na Guerra da Coréia e sua história com Ji-Ah (Jamie Chung). Letitia é alguém que não assume responsabilidade e usa seus irmãos para propósitos egoístas, ao longo da narrativa, ela vai mudando sua atitude aos poucos e percebe que é mais parecida com a mãe que tanto odeia do que gostaria de admitir.
Os elementos de horror são bem utilizados e sempre carregam o melhor dos gêneros mencionados anteriormente, a produção visual das criaturas e demais excentricidades é muito caprichada com os designs sendo os mais aterrorizantes possíveis e com uma computação gráfica bem feita. Figuras icônicas da obra de Lovecraft como Cthulhu e Shoggoth aparecem na série e com visuais bastante caprichados. Também é louvável o esforço dos criadores em incluir criaturas de lendas culturais de outros países e povos, assim como também incluir certa representatividade asiática e indígena.
Por fim, é justo dizer que o desenvolvimento tanta da trama quanto dos personagens é muito até o final que perde completamente a sagacidade dos demais capítulos. A season finale é recheada de ideias que não fazem sentido, pois além de trazer muitos problemas de descaracterização de personagens, também é apressada em resolver os conflitos apelando para muitas conveniências de roteiro. Isso não tira o mérito dos demais episódios, mas não deixa de ser um final decepcionante para uma das melhores séries do ano.
'Lovecraft Country' merece a atenção de todos e prova ser mais um acerto da HBO.
Nota: 8,5
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