O live-action da Netflix acerta onde menos se imaginava e acaba não sendo um desastre completo, mesmo que navegue em um oceano de vergonha alheia.

O jovem Monkey D. Luffy nutre o sonho de ser o novo rei dos piratas. Ele monta uma equipe de tripulantes com habilidades especiais e sonhos distintos. Como a jornada não será fácil, os Chapéus de Palha deverão enfrentar uma série de inimigos em cada uma das aventuras.

Em 1997, o jovem mangaka Eiichiro Oda lançava na revista Shounen Jump o seu primeiro grande mangá a ser serializado: One Piece. Logo depois, o mangá se tornou uma febre no Japão (e é até hoje!) e um hit gigante no mundo inteiro, tendo mais de 1000 capítulos sendo lançados e com lançamento quase semanal, uma série animada produzida pela Toei Studios com mais de 1000 episódios e aproximadamente 17 longas metragens lançados nos cinemas, além de parques, restaurantes e atrações espalhados por todo o Japão e mundo. Esse é o tamanho dessa obra de Oda que é tão especial para muitos (incluindo este que vos fala).

Enfim Hollywood viu a oportunidade de lucrar com a obra e começou a produzir um live-action feito pela Netflix, com Steven Maeda (Lost, Arquivo X) e Matt Owens (Luke Cage, Os Defensores) como o showrunners, roteiristas e criadores, e Tom Hyndman (Harley Quinn, Alcatraz) como um dos principais roteiristas. 

Sempre que temos essas adaptações feitas por Hollywood, é impossível não ficar apreensivo, e com One Piece isso foi certeiro pois é praticamente impossível adaptar as bizarrices de Oda para o live-action sem ficar tosco ou ruim, mas aqui estamos nós.

O tom de One Piece é único e bem específico da cultura japonesa e do próprio Eiichiro Oda. Sendo bem engraçado e bobo ao extremo, com uma pitadinha de galhofa. E sempre estive curioso pra saber como diabos a Netflix ia adaptar as piadas e personagens estéricos de One Piece, e aí que mora o maior problema desse live-action.

A americanização de One Piece torna vários momentos dessa série serem muito difíceis de assistir, causando extrema e quase fatal vergonha alheia para o espectador. Os visuais transitam de muito bons para cosplays feitos na lojinha da esquina constrangedora. O humor padrão de filmes da Marvel que todos estão cansados, com sacadinhas e diálogos bobos que já vimos a rodo e uma falta de entendimento e coragem de abraçar 100% as loucuras e piadas de Oda deixam a maior parte da série quase inassistivel.

A história base de One Piece é bem respeitada e apresentada pela Netflix, que faz um bom trabalho em contextualizar tudo no primeiro episódio e apresentar referências e easter eggs mais específicos para os fãs mais hardcores da obra base que serão exploradas no futuro, como a introdução breve da organização criminosa Baroque Works no primeiro episódio.

A direção da temporada fica a cargo de Marc Jobst (Demolidor, Hannibal), Josef Kubota Wladyka (Tokyo Vice, Narcos: México), Emma Sullivan (Doctor Who), Tim Southam (Deuses Americanos, Bates Motel), e todos fazem um surpreendente trabalho, principalmente com as cenas de ação que são bem coreografadas e diferentes. A produção geral da série é muito boa, tendo um alto valor de investimento pela parte da Netflix, recriando roupas, cenários e navios. O cgi também é bem competente e os poderes de borracha de Luffy ficaram ótimos.

Iñaki Godoy (Imperfeitos, La Querida del Centauro) é disparado a melhor coisa dessa série. Ele foi um achado e tanto pela parte da Netflix e não tenho a menor dúvida de dizer que ele nasceu pra interpretar Luffy. Mesmo com a “americanização” de One Piece que prejudicou muito o humor da série e o próprio Luffy, ele tem um carisma sem fim e entende o que é preciso para trazer os trejeitos bobos de Luffy. 

Dá pra perceber que os roteiristas do live-action amam Zoro e Nami, pois não só dão muito mais destaque pra eles (em alguns momentos parece que Zoro é o protagonista da série) como eles tem o prazer (só deles acredito) de pôr em prática suas fanfics e transformar os dois em um quase casal, tendo constantemente um climinha de romance entre eles, coisas que não podia faltar em uma série americana. Mackenyu (Circulo de Fogo: A Revolta, Samurai X: O Final) como Zoro tem carisma negativo e Emily Rudd (Hunters, Rua do Medo: 1978 - Parte 2) faz o possível mesmo com a sua peruca vindo diretamente da série de “Lazytown”. 

Usopp é um dos personagens mais queridos, mas o seu arco foi de longe o mais modificado para acelerar a trama, e caímos na velha questão dos produtores cortando coisas que acham dispensáveis mas que representam muitas partes importantes para a criação desses personagens. Jacob Gibson (Maldito Rap, Blairsden) está totalmente apagado como o personagem mais por culpa do roteiro, mas ele sabe trazer um pouco de carisma para suas cenas. Já outra grande surpresa positiva foi o Sanji de Taz Skylar (O Projeto Lazarus, Villain), que mantém toda a classe e carisma do excêntrico cozinheiro dos chapéus de palha, roubando todas as cenas em que aparece.

O resto do elenco de apoio varia de boas adaptações a cosplays de baixa qualidade. Gosto particularmente da versão de Koby de Morgan Davies (A Morte do Demônio: A Ascenção), e o Garp de Vincent Regan (300, Tróia) me conquistou lentamente, embora falte todo o espírito bobo do herói da marinha característico dele. Mas de tudo que mais me deixou realmente triste e  irritado, foi essa versão água de salsicha de Shanks. Peter Gadiot (Yellowjackets, A Rainha do Sul) não tem nenhum charme e os diretores nem tentaram criar emoção em suas cenas ou guiá-lo, estragando alguns dos melhores momentos do começo de One Piece.

Os vilões são outros pontos irregulares. O palhaço Buggy ficou muito bom assim como indicava os trailers e imagens promocionais. Inicialmente não estava gostando do seu “tom sério”, mas sua introdução no mangá também é assim. Jeff Ward (Hacks, Agentes da SHIELD) abraça a galhofice do personagem bem, e os efeitos estão bem decentes. Arlong, um dos antagonistas mais marcantes de One Piece e os homens peixe estão visualmente bem caracterizados, mas não tem nem a metade do impacto ou passam alguma sensação de ameaça. Já Kuro e Don Krieg são tão ruins que nem vale citar tanto.

Um ponto que me surpreendeu foi a trilha sonora original da série composta por Sonya Belousova e Giona Ostinelli (The Witcher, The Romanoffs). Ela tem um tom mais épico e aventuresco no estilo da franquia “Piratas do Caribe”, que inclusive foi uma grande inspiração para a série no geral. Mesmo tendo sentido muita falta da trilha sonora instrumental incrível do anime (embora tenha brevemente a música “O Saquê do Binks”, outro clássico do mangá e anime), a trilha sonora original da série não desaponta.

Como eu disse, mudanças são necessárias para essas adaptações, mas diversas coisas e personagens foram cortados em detrimento de um plot paralelo envolvendo Garp e a marinha, que não agrega absolutamente NADA para a história e serve só para os episódios têm uma duração padrão que agrade a Netflix.

No fim, eu fico relativamente grato pela Netflix ter investido tanto e tentando ao máximo trazer One Piece para o live-action. Não que a obra precisasse disso, mas vai acabar apresentando esse universo espetacular de Eiichiro Oda para novas pessoas que sempre tiveram receio de embarcar na jornada de Luffy. Mesmo sendo irregular, acerta em trazer um alto investimento e realmente tentar fazer justiça à obra base, mesmo que falhe em vários aspectos e na tradução para a linguagem estadunidense. Muitos fãs estão gostando, e muitos novos fãs estão sendo formados. Mesmo não gostando do resultado final, não me resta outra alternativa a não ser torcer para o sucesso dela e que mais pessoas se apaixonem pelo bando dos chapéus de palha.

Nota: 5

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