Adaptação prova que até os sonhos mais impossíveis podem ser realizados.

Uma mistura de mitos modernos e fantasia sombria de Neil Gaiman que segue pessoas e lugares afetados por Morpheus, o Rei dos Sonhos, enquanto ele conserta os erros cósmicos - e humanos - que ele cometeu durante sua vasta existência.

Quando falamos de quadrinhos, um dos mais aclamados e famosos é sem dúvidas “Sandman”, obra de Neil Gaiman (Deuses Americanos) que revitalizou o personagem da DC Comics no final dos anos 90, trazendo uma visão mística e completamente diferente de tudo antes visto, além de ajudar na criação do selo Vertigo (focado em obras mais adultas) dentro da DC. Mesmo diversas produtoras e estúdios tentando adaptar Sandman durante décadas, foi em 2019 que a Warner Bros. Television em parceria com a Netflix anunciaram que estavam desenvolvendo uma série live-action adaptando a obra, com a aprovação e envolvimento de Gaiman, que atuou como produtor e roteirista. Além de Gaiman, a série tem também o envolvimento de Allan Heinberg (Mulher-Maravilha, Jovens Vingadores) como principal roteirista e showrunner e David S. Goyer (Batman Begins, O Homem de Aço) como produtor e roteirista.

Como um grande fã da obra original (considero o meu quadrinho favorito de todos os tempos), estava ansioso e apreensivo quando anunciaram a adaptação. A Netflix não tem exatamente o melhor histórico com adaptações, mas a confiança e entusiasmo de Neil Gaiman com a adaptação fez com que o coração de qualquer fã de Sandman ficasse um pouco mais sossegado.

A trama da série segue fielmente os primeiros dois arcos dos quadrinhos: “Prelúdios e Noturnos” e “A Casa de Bonecas”. Vemos Morpheus (Tom Sturridge)sendo capturado e aprisionado por 100 anos, e após ser libertado tem que reconstruir o Sonhar, recuperar seus itens roubados e capturar pesadelos e sonhos que escaparam. 

O que faz “Sandman” ser tão especial (além do roteiro espetacular de Gaiman) é a pluralidade de temas e diferentes pessoas que conseguem se conectar com a história e personagens. “Sandman” é uma história sobre histórias, sobre sonhos, e principalmente sentimentos. Sempre foi marcante por incluir personagens de minorias e tratar todos com carinho, estando à frente de seu tempo. A primeira vez inclusive, que eu li uma história que abordava transfobia de uma forma tão chocante e sensível foi com Sandman, e ela foi feita no meio dos anos 90.

Isso prova como parte do público nunca realmente entendeu sobre o que “Sandman” realmente é. Muito ódio e reclamações surgiram por parte de alguns "fãs" contra a série quando o elenco (majoritariamente diverso) começou a ser revelado, principalmente contra a atriz Kirby Howell-Baptiste (Cruella, The Good Place), pelo fato dela ser negra e estar interpretando a personagem Morte (que toma diferentes formas e visuais, fazendo as reclamações serem ainda mais estúpidas). Kirby só aparece brevemente em um episódio, mas rouba a cena e interpreta magistralmente essa personagem incrível.

O grande desafio da Netflix no entanto sempre foi fazer Sandman virar algo mais "palatável" para o grande público, já que a série ia atingir muitas pessoas de diferentes nichos, e ainda assim manter a essência da obra e satisfazer os fãs dos quadrinhos. Como fã, digo que todos vão amar a série mesmo com algumas mudanças pontuais sendo feitas, com quase nenhuma delas afetando a experiência geral.

Mas falando de algumas adaptações que realmente não ficaram boas, a personalidade de Morpheus foi algo que me desagradou um pouco. Tanto a atuação, visual e voz de Tom Sturridge (Piratas do Rock, Irma Vep) ficaram perfeitos, mas um dos elementos mais fascinantes do personagem nos quadrinhos é o seu arco e personalidade que mudam ao longo da história, com ele começando a criar “sentimentos” e empatia pelos seus amigos e principalmente por humanos. Na adaptação vemos que Morpheus não age sem remorso, mostrando sentimentos tristes quando toma algumas decisões.

Um dos personagens que mais se destacaram e sofreu um “upgrade” em relação à obra original é o Coríntio, interpretado pelo ator Boyd Holbrook (Logan, Narcos). Aqui ele é elevado ao papel do grande antagonista da temporada, sendo um pesadelo que se aproveitou do aprisionamento de seu mestre e criador (Sonho) para se tornar um serial killer no mundo dos humanos. Ele não só mantém os aspectos dos quadrinhos como também faz o Coríntio ser quase um “estrategista” que está alguns passos à frente de todos. Eles fizeram o personagem ter um tom mais sexual e ter atração por homens, o que traz mais  camadas para seu desenvolvimento.

Infelizmente uma personagem que não me agradou em nada foi Johanna Constantine, vivida pela atriz Jenna Coleman (Doctor Who, Capitão América: O Primeiro Vingador). Por questões de contrato, a Warner Bros. não permitiu que eles utilizassem o personagem John Constantine, assim a equipe da Netflix optou por usar a antepassada de Constantine (que existe nos quadrinhos) no seu lugar. Entretanto, o episódio onde ela aparece não só é arrastado e chato, mas a personalidade de Constantine foge do que o personagem é. A própria atuação de Coleman no papel ficou esquisito, como se a atriz não estivesse com vontade de fazer a personagem.

Já o resto do elenco está ótimo e muito bem caracterizados nos papéis. Os destaques ficam para Patton Oswalt (Eternos, Ratatouille) como Matthew, Gwendoline Christie (Game of Thrones, Star Wars - Os Últimos Jedi) como Lúcifer, David Thewlis (Mulher-Maravilha, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban) como John Dee, Mason Alexander Park (Cowboy Bebop, iCarly) como Desejo e Charles Dance (Game of Thrones, O Jogo da Imitação) como Roderick Burgess.

Os primeiros seis episódios adaptam “Prelúdios e Noturnos”, o primeiro arco dos quadrinhos de Sandman. Ele consegue ser muito fiel ao começo da história de Gaiman, enquanto ainda deixa a história mais palatável para o grande público. Vale ressaltar os incríveis episódios 4, 5 e 6, que adapta fielmente alguns dos momentos mais emocionantes e eufóricos de Sandman.

A segunda parte da temporada que adapta “A Casa de Bonecas” se torna um pouco massante e arrastada, com o arco da personagem Rose Walker (Kyo Ra) não sendo muito interessante. Mas ela ganhou fôlego nos últimos dois episódios com a “Convenção de Cereais”, que foi muito bem adaptada na série.

Outro ponto negativo é a fotografia e o “visual geral” da série. Em alguns momentos a fotografia é muito escura, não dando pra enxergar muita coisa, fora o tão temido “filtro cinza” que está presente cada vez mais nas produções. Isso empobrece o visual da série e deixa ele parecido com outras produções genéricas da Netflix. E se tem uma coisa que Sandman não é, é visualmente genérico. 

Na obra original, Gaiman vai plantando várias sementes dos futuros arcos (e principalmente do grande final) no início, e na adaptação não podia ser diferente. A série ainda não foi oficialmente renovada para uma 2ª Temporada pela Netflix, mas uma futura temporada deve adaptar os arcos “Terra dos Sonhos” e “Estação das Brumas”, junto com o crescimento de Daniel (o filho de Lyta Hall), que nasceu no último episódio.

Mesmo com alguns tropeços, a Netflix e a Warner Bros. Television conseguiram o impossível e adaptaram “Sandman” de uma forma muito boa. Não chega aos pés dos quadrinhos escritos por Gaiman, mas mantém toda a essência e magia que Morpheus e toda a galeria fantástica de personagens representam. Que a Netflix renove a série e continue a nos presentear com bons sonhos.

Nota: 8.5

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