Os anos 90 foram década marcante para as HQs, nesse período, o mercado de quadrinhos se encontrava numa bolha criada pela especulação de mercado e foi quando surgiu a Image Comics. Mas no que se fala de estilo e identidade, essa década ficou especialmente marcada pelo estilo exagerado de se retratar as mulheres, e em meio as publicações dessa década, uma dessas mulheres era na verdade um homem. Qualquer subtexto queer tirado da frase que você leu foi inadvertido. 

Lukasz é um guerreiro imortal que habita diferentes corpos há 1500 anos, toda vez que seu corpo atual é morto, sua alma pula para um novo hospedeiro cuja a vida será tomada para que o guerreiro possa prosseguir com sua batalha contra o ser conhecido como Boneyard. A vida de Lukasz é mudada quando ele é pela primeira vez obrigado a habitar o corpo de uma mulher, Eden Blake, uma mãe divorciada atraente.


Para entender como a personagem (ou "o personagem") surgiu, é preciso falar do Ultraverse. A Malibu Comics foi uma editora de quadrinhos ativa entre meados dos anos 80 aos 90 e hoje mais lembrada por sua parceria com a Image Comics durante suas primeiras publicações. O Ultraverse surgiu como uma tentativa da Malibu de criar um universo compartilhado como da DC e da Marvel, usando personagens como Hardcase, Prime, Sludge, e é claro, Mantra. O Ultraverse foi um sucesso enquanto durou, rendendo inclusive uma série animada de péssimos diálogos chamada Ultraforce, mas a linha acabou sendo morta pelo estouro da bolha na indústria dos quadrinhos nos anos 90.



O título original da Mantra passaria por diferentes artistas durante sua run, mas consistentemente escrito por Mike W. Barr, um autor talentoso, conhecido por HQs como Batman - O Filho do Demônio. O talento de Barr torna a HQ uma experiência particularmente estranha, uma vez que se trata de uma HQ de super-herói competente, sendo no pior dos casos uma obra datada por ser produto de seu tempo. Apesar disso, o elefante na sala permanece.

Para discutir uma HQ cuja gimmick é a ideia de um homem preso no corpo de uma mulher, faz sentido discutir o histórico de personagens trans em histórias em quadrinhos. Essa ideia é inconveniente pelo motivo de que antes de 1993, quando Mantra estreou nas páginas, esse histórico era quase inexistente. Entretanto, existe um exemplo famoso que precede Mantra em mais de uma década: Sir Tristão de Camelot 3000, escrito por ninguém menos que Mike W. Barr.



Qualquer tentativa de achar personagens trans em HQs antes da última década resultará em um único tipo de personagem "trans", personagens que se encontram no corpo errado por intervenção de magia ou ficção científica. O Mighty Man do título do Savage Dragon é uma mulher que magicamente se transforma em um super-herói homem, a Mulher-Aranha Ultimate é um clone do sexo oposto de Peter Parker mas que ainda se vê como o Peter, o Ultra-Humanoide é um super-vilão que se transfere pro corpo de uma mulher para evitar suspeitas. Ambos personagens de Barr seguem essa mesma linha. Mas enquanto todos os citados são tratados como conceitos malucos, algo faz Sir Tristão diferente.

Spoilers da HQ Camelot 3000 a seguir...



Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland foi a primeira maxisérie da DC. Nela, Rei Arthur retorna de seu sono após a batalha contra Mordred, agora no ano 3000 de uma Terra sofrendo uma invasão alienígena, Arthur deve reunir as reencarnações de seus cavaleiros para derrotar os invasores. Lançada direto para comic shops, a maxissérie não tinha as mesmas restrições que HQs lançadas em bancas, então a Barr e Bolland tinham a liberdade de criar uma subtrama queer.

No futuro, os Cavaleiros da Távola Redonda reencarnam em corpos diferentes, então Sir Galvão é um africano, Sir Galaaz é japonês e Sir Tristão reencarnou num corpo de mulher, sendo efetivamente um homem trans. O que separa Tristão de personagens como Mantra é a forma que ele se enxerga, enquanto Eden Blake é uma mulher possuída por Lukasz, Tristão sente que nunca deixou de ser um homem e o feitiço de Merlin que revelou suas lembranças apenas revelou quem ele sempre foi e tem o desejo ardente de reaver um corpo de homem.

Com esses elementos em mente, é justo dizer que Camelot 3000 é uma HQ chegou aos dias de hoje de uma forma saudável e pode ser apreciada de forma mais aberta do que quando foi lançada? Não, definitivamente não. Os cavaleiros insistem em chamar Sir Tristão de "Lady Tristão", Tom insiste que Tristão agora é uma mulher e deve apenas aceitar esse fato. Durante a trama, Lady Isolda, amante de Tristão em suas vidas passadas, também reencarna no corpo de uma mulher e quer um relacionamento com ele, mas Tristão insiste que ela deve ficar com um homem. Ao fim da HQ, Sir Tristão se aceita como mulher e inicia um relacionamento com Isolda. Para os padrões de 1982, mostrar um relacionamento entre duas mulheres retratado sob uma luz positiva era considerado bem a frente de seu tempo.



Mas não estamos mais em 1982, e o fato é que as ideias de Barr claramente ficarão datadas. Por mais que Camelot 3000 tenha sido pioneira, a maxissérie ficou ofuscada por predecessores como Watchmen O Cavaleiro das Trevas, que são inegavelmente melhores e mais revolucionários não por quebrar normas sociais, mas pela narrativa e influência na mídia de quadrinhos. Talvez ela pudesse ter aberto espaço para autores introduzirem personagens gays mas no que se se refere a personagens trans o mesmo não pode ser dito.

De volta a Mantra...

 


Pessoalmente, eu não acredito que Barr tenha tido alguma má intenção com o personagem de Sir Tristão ou Mantra. O autor simplesmente parece achar um conceito fora desse mundo a ideia de um homem preso no corpo de uma mulher. Podemos ver isso bem em Mantra em que o ponto de vista da personagem é claramente retratado como masculino (e um que Barr se sente mais confortável escrevendo) enquanto o mundo ao redor reage a personagem como reagiria a uma mulher, uma dicotomia interessante.

Ainda assim, não é como se HQ fosse sem defeitos além de uma premissa equivocada. Não é segredo para ninguém que quadrinhos nos anos 90 eram cheios de mulheres em poses sensuais e trajes reveladores. Mantra não é exceção, mas quando se tem em mente que a mulher voluptuosa e seminua usada como eye-candy para adolescentes de sua época se trata na verdade de um homem é que a HQ se torna inadvertidamente queer.



Mantra beija a Electrocute (personagem de The Strangers, outro título do Ultraverse) na imagem acima, e eu acredito que essa seja a única coisa intencionalmente queer feita na HQ, e mesmo aí Lukasz acha errado beijar uma mulher no corpo da Eden e argumenta que Eletrocute seja uma robô. Mas no geral, Mantra se interessa mais em desenvolver um estranho romance heterossexual entre Lukasz e Eden.

O desenrolar da HQ é que Lukasz consegue um novo corpo de homem usando a tecnologia que criou o personagem chamado Prime e devolve o corpo de Eden. Entretanto, Eden é morta pela vilã Necromantra e Lukasz retorna ao corpo de Eden jurando cuidar dos filhos dela e aceitando passar o resto da vida nesse corpo.



Pro final das últimas publicações do Ultraverse, Mantra foi substituída por Lauren Sherwood, a babá dos filhos de Eden, após Lukasz se aposentar da vida de super-heroína e servir como mentora de Lauren. A segunda Mantra estrelou um título solo que eu não li, mas baseado nas mudanças é possível comentar que é menos estranho em troca de ser mais genérico.

Após o fim da Malibu Comics com o estouro da bolha no mercado de quadrinhos, a Marvel adquiriu o o Ultraverse mas com parte dos direitos dos personagens ainda pertencendo aos seus criadores e uma tentativa frustrada de trazer a linha de volta em 2005, é seguro dizer que as esperanças de trazer esse universo e essa personagem de volta são microscópicas. 

Mantra é um bom exemplo de como o imaginário popular mudou sobre a relação que nós temos hoje com personagens queer, e ainda mais sobre a relação dos criadores. Comicamente inconsciente dessa relação, essa HQ pode ser relembrada como um curioso caso de ficção em que ser atraído por uma mulher não poderia ser mais gay.

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