"Eternos" abre mão da receita de bolo da Marvel e entrega um filme repleto de representatividade e que não se apressa em narrar sua história.

O ano era 2018, quando Kevin Feige anunciou que um longa baseado na série de quadrinhos da Marvel, Eternos, estaria em desenvolvimento. Em 2019, os primeiros anúncios oficiais do elenco vieram à tona, trazendo nomes de impacto e que nunca imaginaríamos que passariam pelo MCU. O lançamento foi programado para o final de 2020, no entanto, como praticamente tudo na indústria cinematográfica, encarou adiamentos em razão da imprevisível pandemia. Depois de uma longa e sofrida espera, finalmente temos o lançamento de Eternos.

Apesar de seu elenco estelar, que conta com artistas de renome como Angelina Jolie e Salma Hayek, é o nome de sua diretora, Chloé Zhao, que tem repercutido na mídia ao redor do mundo. Como primeira mulher asiática a vencer um Oscar na categoria de melhor direção por Nomadland (2020), obviamente as atenções se voltaram com uma maior expectativa para esse longametragem, em especial por ele vir carregando a promessa de renovar o MCU, que repetidamente se apresenta através da receita de bolo típica do "olho que tudo vê" Kevin Feige.

A crítica a seguir NÃO contém spoilers e responderá a seguinte pergunta: Eternos é de fato ambicioso e traz novidades como prometido? 

Antes de seu lançamento no Brasil, Eternos foi liberado para críticos de todo mundo e, de modo a surpreender uma boa parte do público, a nota em alguns sites foi muito inferior ao esperado. No Rotten Tomatoes, por exemplo, o filme performou até o momento o pior resultado para uma obra do MCU, recebendo o selo de tomate podre, com nota 53% até o momento da publicação dessa crítica. Obviamente, isso aguçou ainda mais a minha curiosidade para assistir o filme e tirar minhas próprias conclusões.

A premissa do filme, que compõe a fase quatro do Universo Cinematográfico da Marvel, traz a história dos Eternos, uma raça de seres imortais criados pelos Celestiais para combater criaturas poderosas chamadas Deviantes que agem como predadores alfa e ameaçam os seres humanos.

Tratando-se de uma equipe de dez integrantes (haja Eterno por metro quadrado), o primeiro desafio de Zhao foi conseguir construir a história de tantos personagens sem dar a impressão de subutilização e, ainda assim, criar vínculos dos mesmos com o público, um desafio parecido com o enfrentado ao longo dos filmes dos Vingadores. Com relação a esse primeiro desafio, temos a entrega de um bom resultado. Eternos não chega a ser um filme de origem, mas contextualiza bem suas relações, "humaniza" seus super heróis e introduz seus personagens de forma satisfatória. 

Entre os Eternos é perceptível a existência de lideranças e destaques, o que já era de se esperar. Sersi (Gemma Chan), detentora do poder de modificar a  matéria e Ikaris (Richard Madden), o mais poderoso de todos eles, que além de voar, lança raios com os olhos (bem ao estilo superman de ser) seriam o foco das atenções e responsáveis por reunirem a equipe. E justamente aí se encontra o calcanhar de aquiles do filme, uma vez que justamente os personagens de frente são os mais "sem sal". Falta química na relação dos dois e isso faz notável falta. O quesito emoção deixa a desejar aqui. A oportunidade de finalmente apresentar um romance envolvente, algo que é colocado para escanteio na grande maioria dos filmes da Marvel, é desperdiçada e esquecível. A primeira cena de sexo do MCU, não impressiona em nada.

Por sorte, temos outros oito Eternos para compensar essa deficiência. A começar por Angelina Jolie no papel de Thenas. Chega a ser difícil aceitar a atriz em um papel menor, uma vez que estamos acostumados a vê-la sempre encarnando protagonistas e com tempo expressivo de tela. No entanto, a proposta da obra não é dar protagonismo gratuito e, sim manter a coesão. Dessa forma, ela entrega cenas importantes e tem uma das personagens mais atrativas. Sua interação com Gilgamesh (Ma Dong-Seok), um eterno que possui superforça, foi um dos elementos que mais funcionou, muito mais inclusive do que a relação de Sersi e Ikaris, pena não ter sido explorado mais. 

Salma Hayek dá vida a Ajak a matriarca e alicerce do grupo e o papel lhe cai muito bem. A Duende - Sprite no inglês - (Lia McHugh) é a única deles em forma infantil. Ela consegue fazer ilusões e tem um temperamento meio que rebelde, o que é essencial para a dinâmica da história. Sua ironia dá um toque necessário na vasta equipe. Druig foi uma grata surpresa. Barry Keoghan garante discursos viscerais, que impressionam e tornam seu personagem uma peça chave e que promete agregar, uma vez que o poder de controlar a mente permite um amplo leque de possibilidades. O conflito interior do personagem apresentado nas telas tem um desenrolar coerente com a proposta, ainda que um pouco divergente dos quadrinhos.

Temos representatividade e diversidade de sobra e esse talvez seja o ponto alto da trama. Ela é simplesmente orgânica, ao contrário de alguns filmes onde fica tudo muito panfletado. A começar temos várias heroínAs e artistas de diferentes raças e etnias! 

E não para por aí. Uma atriz surda interpreta uma heroína surda e não podia ser mais lindo de se ver. Lauren Ridloff dá vida a Makkari que tem como poder a super velocidade. A atriz em entrevistas inclusive fez um apelo: "Normalizem as legendas". Está mais do que na hora de se pensar e de fato se colocar em prática a inclusão. Vale ressaltar que o uso da velocidade pela personagem ficou visualmente impecável e prova que a técnica de slowmotion é dispensável e já batida quando se trata desse poder.

Ainda sobre representatividade, temos aqui também o primeiro super herói LGBTQIAP+ do MCU. Phastos (Bryan Tiree Henry) é um mestre em tecnologias e é um dos responsáveis pelos momentos cômicos do filme ao lado de Kingo (Kumail Nanjiani). Esse, por sua vez, nas telonas sofreu uma adaptação quanto ao seu poder e, em vez de carregar uma espada, lança projéteis de energia, o que  agregou esteticamente aos combates. 

Ao contrário do que muito se falou, o filme tem ação sim! Mas não se trata disso apenas. Ao contrário de filmes como Viúva Negra, onde se vê muita ação e, em contra partida, pouca história, aqui temos de fato tempo dedicado a explicar o contexto histórico tanto dos Eternos quanto Deviantes. Isso é feito de forma bem distribuída, didática e necessária.

O filme se aproveita bem do fato dos Eternos estarem no planeta Terra há milhares de anos. Passeamos pela história da civilização humana e isso nos dá deslumbrantes cenários, desde a Babilônia, até a arrasada Hiroshima, onde a fotografia nos entrega um espetáculo de tirar o fôlego. Ao contrário de outras películas, aqui o colorido marcado se atém às cenas que genuinamente requisitam isso, como o caso do momento de dança em Mumbai. Somado a fotografia, a iluminação dá um ar de sobriedade e é bem menos solar do que de outros filmes do MCU.

Temos comédia? Sim! De forma finalmente comedida. O texto não pesa a mão no humor e traz um resultado mais maduro. Até mesmo Jolie dá uma ou outra deixa, mas são Kingo e Phastos que dominam essa área, juntamente com um coadjuvante inesperado e brilhante, Karun (Harish Patel). O mordomo de Kingo é aquele personagem cuja a comédia é um elemento mais que natural e simplesmente flui.

Kit Harrington tem pouco tempo de tela, mas a sensação que dá é de alívio. O ator interpreta Dane, interesse amoroso de Sersi nos dias atuais, tenta ser divertido, mas ele simplesmente não combinou com a proposta do personagem. Uma pena já que Dane promete desdobramentos significativos.

Pra você que curte e espera pelas famosas conexões que a Marvel faz entre seus filmes, saibam que elas existem e algumas delas são fundamentais para o destino do MCU. Ainda no trailer, os Eternos são questionados sobre o porquê de não terem interferido no conflito contra Thanos. Isso é respondido e não faltam menções ao estalo, ao blip e ao futuro dos Vingadores. Se estavam ansiosos por Kang, saibam que Eternos evidencia um panorama ainda maior no contexto histórico do universo que, sem dúvida, refletirá nos filmes e séries que virão a seguir.

Os efeitos especiais mais uma vez se mostram de qualidade. As sequências de lutas são lindas de se ver, entre elas uma de Thenas contra Kro (Bill Skargard), um Deviante. Um ou outro erro de continuidade do CGI pode atrair a atenção dos mais observadores, mas nada que prejudique a integridade gráfica da obra. Por falar em Kro, os Deviantes são usados para entregar a ação, mas a luta contra eles está longe de ser o propósito principal do filme.

Se você espera mais do mesmo, ou algo grandioso como Vingadores: Ultimato talvez se decepcione com o resultado de Eternos. Esse filme trata de relações. Debate a obediência cega, vaidade, segundas chances e conceitos familiares muito fortes em um roteiro sólido. Desde Pantera Negra, filme dirigido e roteirizado por Ryan Coogler, nenhuma obra da Marvel foi tão enfática em tratar com profundidade as relações humanas. Assim como desde James Gunn, com os Guardiões da Galáxia, um filme da Marvel não tinha tamanha personalidade.

Eternos conta com duas cenas pós-créditos importantes de se assistir, que agregam à trama. Inclusive uma delas vem causando alvoroço nas salas de cinema.

O filme terminou ovacionado na sessão, sinal talvez de que o público receberá de uma forma mais positiva, Eternos

Chloé Zhao ousa ao abandonar aquele molde pronto dos demais filmes da Marvel e atinge um resultado satisfatório. 

Em tempos onde a fórmula se desgasta, Eternos traz um sopro de novidades que espero que se espalhe pelo MCU, que deve ser visto sim com mérito. Então, a resposta é SIM o filme é ambicioso e, apesar de exibir falhas, entrega novidades importantes para o destino do universo da Marvel e uma experiência fascinante.


Nota: 8,5


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