“Shakespeare: “O Psicólogo”. “Ser ou não ser”. “Ter ou não ter”. “Fazer ou não fazer”. “Discursar ou não discursar”. “Reinar ou não reinar”. “Falar ou não falar”. “Se tratar ou não se tratar”. “Ficar com medo ou não ficar com medo”. “Gaguejar ou não gaguejar”. “Afobar ou não afobar”. Eis as questões. Eis que o filme “O Discurso do Rei” baseia–se em fatos reais para colocar em xeque problemas rotineiros que assombram muitas posições privilegiadas, porém, com um toque romanesco magistral.

Na trama, George (Colin Firth, de “O Mestre dos Gênios”, 2016) é gago desde os 4 anos de idade. Este é um sério problema para um integrante da realeza britânica, que frequentemente precisa fazer discursos. George procurou diversos médicos, mas nenhum deles trouxe resultados eficazes. Quando sua esposa, Elizabeth (Helena Bonham Carter, de “Enola Holmes”, 2020), o leva até Lionel Logue (Geoffrey Rush, de “Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra”, 2003), um terapeuta de fala de método pouco convencional, George está sem esperança. Lionel se coloca de igual para igual com George e atua também como seu psicólogo, de forma a tornar-se seu amigo. Seus exercícios e métodos fazem com que George adquira autoconfiança para cumprir o maior de seus desafios: assumir a coroa, após a abdicação de seu irmão David (Guy Pearce, de “Homem de Ferro 3”, 2013).

Nunca um dramaturgo esteve presente tão intensamente e tão audaciosamente na vida de uma autoridade real, assim como Shakespeare esteve “indiretamente” para o rei britânico George VI. Depois de mais de três séculos após a morte do romancista inglês, suas obras, incorporadas pelo especialista da fala Lionel Logue, lapidaram a preparação do príncipe para assumir o trono inglês com tanta vivacidade que lhe serviram justamente, e com exatidão, como base técnica (juntamente com outros métodos pouco ortodoxos) para corrigir falhas, tanto em sua forma mecânica de ser, como em sua personalidade.

Falhas estas que não são aceitas até hoje, seja de integrantes da linha real ou “do resto do povo”. Nervosismo, fala introvertida, maus tratos, hesitação, medo, pressão, despreparo e insegurança são alguns dos defeitos explorados que compõem o sucessor mais qualificado, porém não tão perfeito assim, ao trono real. A consequência disso é a manifestação de “sequelas” graves, tais como gagueira, má locução e má elocução. A oratória, arte de discursar e a tomada de decisões, obviamente, também são prejudicadas por estes transtornos.

Uma pergunta importante é: o que leva uma pessoa a gaguejar e ter medo de falar em público após anos de educação rígida do pai (que se saciava do medo dos filhos), de provocações debochadas do irmão e de tomar correção (leia–se punição) por ser canhoto?

Hipótese: Arrisco dizer a busca pela perfeição, pela avaliação positiva, pela aprovação, pela aceitação, pela naturalidade. O fardo da preocupação, das obrigações, das responsabilidades de cumprir os deveres, de fazer as coisas do jeito certo. E, para complicar, a agravante pressão da iminente Guerra com a Alemanha.

Consequência: após anos de educação altamente rígida por todos os lados, é de se esperar que uma pessoa desenvolva o mau hábito do pré–julgamento e hesitação perante tudo. Ou seja, o medo da má avaliação e da reprovação sobre toda e qualquer ação, escolha, decisão, uma vez que a punição é tiro certo de qualquer maneira, mesmo tendo uma locução e elocução perfeita. Hoje em dia, seria tratado como caso de bullying, já que “a vítima” tinha apenas cinco anos de idade quando começou a sofrer essas críticas.

Pode–se perceber a postura rígida do rei (pai do personagem principal) com a citação: “Postura. Endireitar as costas. Encarar a coisa com audácia e olhar nos olhos.” À primeira vista, parece um conselho positivo, mas comprimido ao estado de retaliação, a punhos firmes e com entonação forte, torna–se malévolo. A nutrição desta postura garante ao príncipe uma conduta um tanto frágil, porém estável, uma vez que ele acaba por pisar em ovos, hesite muito ao pensar e falar, ter medo da decepção, ter falta de confiança, ser impetuoso, arrogante e resistente. E com justa causa, pois foi criado (leia–se preparado) para um cargo difícil, cujo fardo e peso são muito grandes.

Espremido, a única saída é a prática de certos exercícios. Benditos sejam os truques que desenvolvemos mentalmente e fisicamente para nós mesmos e a colocação destes em uso. A primeira regra, segundo o próprio método de Logue, é: “não precisa temer as coisas que temia aos cinco anos.” Esquecer.

Esqueça tudo o que você já aprendeu até agora. Jogue fora todas as coisas negativas que se acercaram dentro de nós. Fale cantando. Gesticule o básico. Não gesticule muito. Manipule. Contracene. Controle. Ensaie. Respire fundo. Inspire. Espire. Pratique tudo isso e o resultado será conseguir manter a calma e não se afobar.

Parece fácil. E é. Afinal, “exercícios físicos e truques são importantes”, já diria Lionel Logue. Por que, então, para nós, parece tão difícil? Simples. Porque não praticamos. Ignorar também é uma forma negativa de lidar com as situações.

Ser ignorado também é cruel. Pois, não há nada mais frustrante que “falar, mas não ser ouvido.” Falar bem e conseguir transmitir a mensagem importa, e muito. Faz uma grande diferença para a pessoa que discursa e não ter um retorno positivo. No caso de George VI, o medo de perder autoridade era tão saliente quanto sua gagueira.

Lionel Logue, em sua época, poderia ser considerado um fonoaudiólogo. Uma posição à frente de seu tempo, pois era considerado excêntrico e praticante de métodos pouco ortodoxos. Hoje, considerado um extremo e importante visionário. Métodos dos quais ninguém na época se atreveria a praticar, Logue ensinava com louvor. Relaxar os músculos da mandíbula, fortalecer o diafragma, falar cantando, gesticular e fortalecer a língua recitando um trava línguas (Três Triste Tigres Trituram Trinta Tigelas de Trigo) são alguns dos exercícios que melhoram o problema mecânico na fala. Além, é claro, de elevar a auto–estima e confiança.

Mais do que métodos diferenciados, Logue não se restringiu apenas às paredes do consultório. Ampliou o horizonte para uma gama de opções que julgou positivas para o favorecimento e crescimento do paciente inglês. É aí que entra, de forma mais esmagadora ainda, a influência de Shakespeare. Influência tal que as ideias serviram para levantar a moral, auto-estima e autoconfiança de George VI, já que a sua dificuldade (gagueira, etc.) é resultado de um psicológico destruído. As obras Shakespereanas podem ser consideradas, então, uma filosofia de vida para instruir uma pessoa insegura e despreparada e ensiná–la a formar um psicológico mais forte, resistente e capacitado.

Ensaiar o discurso e conhecer o local de apresentação também são fatores primordiais para a aprendizagem; assim como é visto na cena em que o príncipe conhece o local de coroação e ensaia. A cena do último discurso (feito pelo rádio) também prima com a última lição de Logue: “Esqueça todos e fale para mim, como amigo”.

Não é à toa que “O Discurso do Rei” levou quatro estatuetas ao Oscar. Não apenas por ser tratado de um caso real. Mas sim porque o filme nos dá uma lição de vida, lição de moral. Ensina-nos a ter persistência, confiança e a certeza de que podemos superar problemas, deficiências. E, também, vemos a busca pela superação, perfeição, aprovação, aceitação e naturalidade.

O Discurso do Rei” está disponível para assistir na HBO Max e Amazon Prime Video.

Nota: 9.5

Post a Comment

Postagem Anterior Próxima Postagem