"Cidade Invisível" acerta na proposta, ao retratar o nosso folclore, mas peca em seu desenvolvimento.
Histórias de fantasia, de modo geral, são sinônimos de vampiros, lobisomens, faunos, centauros, elfos... Sempre seres de mitologias e contos de origem estrangeira. Apesar de nosso folclore ser riquíssimo em personagens interessantes e extremamente lúdicos, é muito raro assistirmos materiais que explorem aquilo que de fato é nosso patrimônio cultural. O pouco que acabamos conhecendo do folclore costuma se restringir à literatura ou animações, como o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Buscando suprir essa necessidade, surge a mais nova série original Netflix: Cidade Invisível, que dá um passo ousado ao privilegiar os principais personagens do folclore brasileiro em formato de série.
Cidade Invisível é uma criação de Carlos Saldanha, que ficou conhecido mundialmente por co-dirigir A Era do Gelo (2002) e por sua recente indicação ao Oscar por O Touro Ferdinando (2017). Baseada nos best sellers de Raphael Draccon e Carolina Munhóz, a série de fantasia e suspense policial conta com sete episódios e está disponível no catálogo da Netflix desde o dia 05 de fevereiro de 2021.A premissa traz Eric Alves (Marcos Pigossi), um investigador da delegacia de polícia ambiental, que perde sua esposa, Gabriela (Julia Konrad), em um trágico incêndio nas matas da Vila Toré. Eric não está convencido de que esse incêndio foi acidental e acredita que talvez tenha relação direta com um empresário que é dono daquelas terras e deseja retirar a população que ali vive. Por essa razão, enquanto tenta lidar com o luto ao lado de sua filha Luna (Manu Dieguez), o policial começa a investigar o que pode ter acontecido, para assim fazer justiça por sua mulher.
O mistério não acaba por aí. Pouco tempo depois, Eric encontra nas areias de uma das praias do Rio de Janeiro um boto cor-de-rosa. Ao recolher o corpo do boto, ele começa a descobrir que algumas lendas podem sim ser verdadeiras, ao ver aquele animal se transformar em um homem, Manaus (Victor Sparapane). À medida que ele investiga mais a fundo, ele vai percebendo que a morte de Manaus e de sua esposa podem estar conectadas.
Ao longo da história vamos sendo apresentados aos personagens místicos. Eles circulam como se fossem pessoas comuns, embora sejam dotados de poderes muito específicos. A líder deles é Inês (Alessandra Negrini), que representa a Cuca, uma das entidades mais poderosas da trama e que dará muito trabalho para Eric, já que ela percebe o risco de serem descobertos pelo investigador. Ela recebe ajuda de Tutu (Jimmy London), um homem extremamente forte e intimidador que é capaz de se transformar em algo parecido com um porco do mato, que representa o Tutu Marambá do folclore. Temos também Camila (Jéssica Cores), como a Iara, a sereia das lendas indígenas, Isac (Wesley Guimarães), como o travesso Saci-pererê, que faz uso de uma prótese dando um tom contemporâneo ao personagem, além de uma das entidades mais poderosas de todas, o Curupira, que vive como um sem-teto cadeirante, uma vez que seus pés são voltados para trás, sendo este interpretado pelo excelente Fábio Lago.
A narrativa embora detenha um potencial incrível, se perde em alguns elementos. Os efeitos especiais em diversos momentos fazem parecer que estamos assistindo a aquela antiga novela da Record, Os Mutantes: Caminhos do coração, ou seja, decepcionam. Como exemplo, cito a cena de transformação do Tutu Marambá. Apesar de alguns acertos gráficos, os exageros são gritantes e incomodam. A edição também deixa a desejar com alguns cortes que deixam a linha temporal confusa e suavizam o componente suspense.
O roteiro peca em seu desenrolar. Após um bom primeiro episódio, a história se arrasta, não assusta ou envolve, se recuperando apenas nos dois últimos, com um plot até interessante, ainda que completamente previsível. De acertos no roteiro, temos a emocionante história de vida de Curupira e a cena que mostra como o Saci perdeu sua perna. Sem dúvida, explorar melhor as criaturas místicas e suas trajetórias teria rendido situações muito mais interessantes do que o que foi escolhido como abordagem central, no caso, a jornada de Eric.
Outro ponto que incomoda é a ambientação. Boa parte dessas lendas são originárias da região Norte. Dessa forma, seria bem interessante a série explorar locações de estados não tão saturados nas telas, enfatizando quem sabe o desmatamento amazônico, o que não prejudicaria em nada a pegada contemporânea. Porém, mais uma vez ,nos deparamos com o Rio de Janeiro e a batida Lapa como locações principais.
Marcos Pigossi é aquele protagonista “seguro”. Ele faz o que tem que fazer e faz “direitinho”, mas definitivamente não dá pra dizer que ele toma a série pra si. Alessandra Negrini, essa sim se destaca com seu ar misterioso e domínio de sempre. José Dumont como sempre arrasa e está muito bem no papel de Ciço, um homem que defende suas crenças e a natureza, apesar de que ouso dizer que o grande personagem e nome da série, apesar do tempo de tela reduzido é Fabio Lago, ao encarnar o Curupira. Ele é visceral em sua interpretação e é o único que passa de fato o temor requisitado por uma série desse gênero.
Apesar de ser uma série mediana, não dá pra ignorar a linda mensagem de preservação ambiental ao trazer o Curupira grande defensor das florestas e apresentar a importância da conservação. A valorização e conscientização da nossa cultura também é sem dúvida o carro chefe, que se soma as dicotomias sociais destacadas pelas criaturas místicas que vivem quase à margem da sociedade. Caso a série se renove, tomara que o orçamento ajude a melhorá-la e que o roteiro se volte realmente para aquilo que interessa.
Nota: 6,0
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