Um verdadeiro show de atuações com uma pauta antirracismo de arrepiar.
Pequenos
Incêndios por Toda Parte (Little
Fires Everywhere) é um drama baseado no romance de Celest Ng, que recebe o
mesmo título. Indicado nas categorias melhor série limitada, melhor atriz (Kerry Washington) e melhor direção
para Lynn Shelton, a minissérie conta com oito episódios e está disponível no
catálogo da Amazon Prime.
Produzida e estrelada pelas titãs
Kerry Washington (Scandal) e Reese
Witherspoon (The Morning Show), a
série já se inicia fazendo jus ao nome. Assistimos a residência da família
Richardson arder em chamas enquanto a autoria do incêndio se torna
imediatamente uma das grandes interrogações da narrativa, embora longe de ser o
único mistério a ser desvendado e compreendido.
A trama se passa na década de 1990 e
gira em torno de Elena Richardson (Reese Witherspoon), principal integrante da
típica “família margarina”. Mulher branca, mãe de quatro filhos, esposa
dedicada e jornalista, em um dia como outro qualquer observa um carro velho,
repleto de malas estacionado na tranquila Shaker Hights com uma mulher e uma adolescente
em seu interior. Ela logo pressupõe que a situação é suspeita e aciona a
polícia local sem pensar duas vezes. No carro em questão estavam Mia Warren
(Kerry Washington), mulher negra, mãe solteira, artista plástica e sua filha Pearl
(Lexi Underwood), que usavam o veículo como abrigo, pois eram recém-chegadas na cidade e ainda não tinham conseguido um lugar para se estabelecerem. E é aí que
a aula sobre racismo estrutural começa a se desenrolar.
Como diz o ditado, o mundo não gira,
ele capota. Elena recebe uma ligação acerca do aluguel de sua casa de hóspedes e
as pessoas interessadas são justamente Mia e Pearl. O constrangimento pela
situação é tão grande que Elena não hesita em alugar o espaço para as duas,
mesmo sem confirmar previamente os antecedentes da artista. O encontro das duas
protagonistas é intenso, com diálogos realistas e transparece duas
personalidades opostas, apesar de exibirem de forma comum uma força tangível.
Inevitavelmente a vida das duas
famílias se cruza, mesmo sob o olhar resistente de Mia. Pearl passa a frequentar
a mesma escola que os filhos de Elena e começa a ficar cada vez mais próxima
daquela família cuja classe social se distancia da dela, inclusive se
envolvendo romanticamente com um deles.
Para conseguir suprir às necessidades da filha deslumbrada com o convívio próximo aos Richardson, bem como para acompanhá-la mais de perto, Mia passa a trabalhar como uma espécie de governanta alguns dias por semana na casa daquela família e, a partir disso, um cenário começa a se revelar. A família que posa como perfeita nas fotos e para sociedade, não é exatamente assim. Pra começar, os filhos são pressionados o tempo todo a serem perfeitos, o que abala especialmente a caçula Izzy (Megan Stott) que não consegue se adequar aos padrões tão rígidos impostos pela mãe, em especial no que tange sua sexualidade, e acaba por enxergar em Mia uma referência. Em contrapartida, Pearl começa a se afeiçoar a Elena, que faz de tudo para auxiliá-la na adaptação à cidade. O contraste da maternidade e as diversas formas de criar os filhos é só um de muitos temas abordados com maestria pela minissérie.
A riqueza do enredo não para aí. Em um
de seus múltiplos empregos, Mia decide ajudar uma colega de trabalho a
recuperar a filha que fora abandonada ainda quando bebê, no entanto esse fato
passa a ressoar em todo o resto, uma vez que Elena é amiga próxima da mulher que
acabou adotando essa criança. Assim que descobre a interferência direta de Mia no caso, Elena passa
a investigá-la mais profundamente e passa a fazer da vida da artista um verdadeiro
inferno, ao passo que descobre os segredos do passado guardados por ela.
É na junção dessas duas realidades que
surgem debates fundamentais sobre questões raciais e a disparidade de classes, bem
como aborto e sexualidade. Kerry Washington e Reese Witherspoon estão
absolutamente INCRÍVEIS na série. Um verdadeiro espetáculo a parte. Os diálogos
são tão realistas que você fica sem fôlego, se emociona, se indigna. Apesar do enredo parecer novelesco,
os assuntos são profundos e coesos. Os personagens não são em nada
superficiais. Ao contrário, cada um tem suas múltiplas camadas que vão sendo
exploradas mais e mais a cada episódio. Você se identifica com eles, tenta agir como
juiz de valores no cargo de espectador, mas no fundo se pega em constante
autoavaliação porque, assim como na ficção, você percebe que também é fruto
do meio e suas atitudes são um reflexo do panorama social vigente.
É possível compreender o cerne das protagonistas com os episódios de flashback muito bem encaixados que apresentam o
passado de cada uma, não justificando suas atitudes, mas sim revelando
quais foram as motivações de suas ações futuras e traços de personalidade.
Não existem planos concretos para uma
segunda temporada, visto que é uma minissérie. Contudo, segundo a autora a ideia de uma sequência não foi descartada
por completo. Ainda assim, o propósito é que o telespectador por conta própria imagine
os desfechos a partir dos desdobramentos do episódio final. Talvez o
ponto fraco da série seja a vontade inerente do quero mais?
Pequenos Incêndios por Toda Parte é de
utilidade pública, emergiu num momento fundamental onde o povo brada nas ruas que vidas
negras importam, e é daquelas séries que agregam muito e marcam pra sempre.
IM-PER-DÍ-VEL.
Nota: 9,0
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