Produzir um filme ou uma série (ou minissérie) como um spin-off, baseado em outra obra – seja de filme, série, obra literária ou de qualquer outro material base –, é sempre um tiro no escuro. É preciso ser muito cauteloso para saber em que terreno está pisando e para onde deve-se mirar, sempre com bastante cuidado para não errar o alvo.
Porém,
é com extrema tristeza que “Os Irregulares de Baker Street” não só errou o
alvo, como, também, deu um tiro no próprio pé. Infelizmente, a produção pecou
feio ao se aproveitar de personagens secundários de uma obra literária de Sir
Arthur Conan Doyle apenas para criar uma série que funciona como um spin-off e
que, praticamente, nada (ou extremamente pouco) tem a ver com o material
original, criado pelo escritor inglês.
Na trama, um grupo de jovens marginalizados é recrutado pelo Dr. John Watson e seu enigmático companheiro, o detetive particular Sherlock Holmes, para investigar uma série de crimes sobrenaturais em Londres do século 19. A tarefa do grupo é buscar o máximo de informações das ruas para ajudar a dupla a solucionar grandes crimes.
À
medida que os casos se tornam aterrorizantes e que um poder sombrio surge em
meio à sociedade vitoriana londrina o grupo deve se unir e contar com toda sua
astúcia para derrotar forças sinistras que ameaçam dizimar a humanidade.
Enquanto os adolescentes problemáticos correm para desvendar um mistério atrás
do outro, o infame detetive de Baker Street recebe todo o crédito pelo
trabalho.
Originalmente criado pelo excelente escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle para as incríveis histórias de Sherlock Holmes, “Os Irregulares de Baker Street” é um grupo de crianças que ajudam o formidável detetive particular a coletar algumas informações cruciais, circulando livremente pelas ruas sem serem notadas e de uma forma menos suspeita; aí, então, o grupo era pago pelos seus serviços. Essa ajuda facilitava bastante o trabalho de investigação de Sherlock Holmes, que correria o risco de ser notado e reconhecido em público caso ele mesmo circulasse pelas ruas ao tentar perseguir um suspeito. O grupo apareceu pela primeira vez no conto “Um Estudo em Vermelho” (1887), aparecendo em mais algumas histórias ao longo da saga literária.
A
produção em tela, criada por Tom Bidwell, é uma série original da Netflix com
oito episódios, que aborda uma história spin-off de Sherlock Holmes com uma
nova perspectiva: em vez de centralizar a história em Holmes e Dr. Watson, “Os
Irregulares de Baker Street”, como o próprio título aponta, foca no grupo de
adolescentes, que atende sob o nome-título que batiza a produção, ajudando nas
investigações dos detetives. É uma maneira diferente de abordar os
personagens secundários de Sir Arthur Conan Doyle; além de apresentar uma premissa
bastante intrigante.
Porém, apesar de ser uma ideia interessante, “Os Irregulares de Baker Street” tem muitas falhas. A começar pelas mudanças totais em seus elementos narrativos, partindo do material base literário que serviu de inspiração para a produção da série. O único elemento narrativo fiel à saga literária é o nome do grupo principal (fora o de Sherlock Holmes e do médico John Watson, é claro) e a ideia central da narrativa – um grupo que colabora com a dupla –, ainda que sendo uma ideia extremamente rasa e superficial. A produção apenas se utilizou desses dois elementos narrativos para criar uma história nova e completamente diferente do que consta na saga literária.
A
série em tela se vale apenas de uma ideia vaga dos personagens e tomou 100% de
liberdade criativa para criar uma produção inteiramente nova, realizando cerca
de 95% de mudanças em toda sua base narrativa, alterando quase tudo acerca do
material base literário. Ou seja, a Netflix simplesmente pegou uma ideia e a
desenvolveu completamente diferente do que foi originalmente feito nas obras
literárias, descaracterizando, assim, os personagens e a história em que eles
estão envolvidos.
Outra falha da série são os constantes clichês e os erros cometidos pelos personagens, convenientemente inseridos na trama justamente para levar o enredo adiante. Embora a série leve o cânone de Sherlock Holmes a novos lugares, isso não justifica (muito menos impede) que todos os clichês possíveis apareçam em algum momento da história.
Além
disso, a série tenta se mostrar inovadora, apresentando um enredo sobrenatural,
bem ao estilo de “Stranger Things” da Era Vitoriana, ao abordar uma fenda entre
dimensões, que ameaça as pessoas desta dimensão; elemento sobrenatural este
totalmente incompatível com a abordagem original. Em sumo, “Os Irregulares de
Baker Street” tem um tom mais sombrio, pois o programa visa mais assustar. Ao
contrário dos mistérios criminais e investigativos recorrentes, designados pelo
famoso detetive particular, a maioria dos casos da série em tela são abordados
através de magia e, mais especificamente, de um evento que pode preceder o fim
do mundo.
Outra mudança que “Os Irregulares de Baker Street” adota é apresentar um grupo composto inteiramente por adolescentes – unidos como uma família, que se apoia e trabalha em conjunto para sobreviver –, em vez de crianças (tal como nas obras literárias). Então, o grupo é mergulhado em um mundo à beira de ser consumido por um mistério sobrenatural. Com isso, a série coloca um grupo de adolescentes problemáticos em um mundo de mistérios, assassinatos e eventos sobrenaturais.
Da mesma maneira, outro aspecto decepcionante é a forma como Sherlock Holmes e o
Dr. Watson são representados. A série transforma dois dos mais infames investigadores
de crimes da história em meros personagens coadjuvantes. Watson é retratado
como um manipulador carismático que bate de frente com a líder do grupo dos “Irregulares”,
enquanto Holmes luta com demônios e vícios. De forma geral, quase todos os
personagens são desajeitadamente caricatos, sem graça e nenhum deles é cativante.
Parte do problema é que a direção, muitas vezes, parece disforme, saltando personagens em torno de um suspense sobrenatural no qual eles nem sempre parecem confortáveis ou genuínos. Com isso, frequentemente move-os em diferentes subtramas e sem pretensão alguma para compensar sua ocasional falta de foco. “Os Irregulares de Baker Street” tão logo já foi cancelada em sua primeira temporada, muito provavelmente por não ter atendido às expectativas da produção, resultando em uma série que não teria um bom desempenho com várias temporadas. Vale lembrar que a série não entrou para o Top 10 da Netflix em momento algum desde sua estreia. Com isso, os evidentes custos altos de produção não seriam tão motivadores para dar continuidade em novas temporadas.
“Os
Irregulares de Baker Street” se apresenta como um suspense sobrenatural com um
grupo de adolescentes investigando casos sobrenaturais enquanto luta para sobreviver.
Se a série contemplasse somente tais elementos em sua narrativa, convenceria
completamente dentro desse gênero.
No entanto, quando a série apresenta o detetive Sherlock Holmes e Dr. Watson como coadjuvantes da trama, a produção sai dos padrões narrativos inicialmente estabelecidos ao misturar o suspense sobrenatural com policial investigativo. “Os Irregulares de Baker Street” seria muito mais eficaz e teria entregado um resultado muito melhor (fazendo muito mais sucesso) se não tivesse conexão alguma com Sherlock Holmes ou com o universo literário em geral de Sir Arthur Conan Doyle. Por fim, ao assistir a produção em tela, o jeito é dissociar os personagens e esquecer as obras literárias, para que a decepção não seja tão grande. A fidelidade da série em relação à obra literária é o que menos se encontra; o melhor a se fazer é reler os livros.
Levando
isso em conta, a Netflix entrega uma péssima produção spin-off que tenta fazer uma
atualização das histórias policiais de Sherlock Holmes com novos elementos
narrativos sobrenaturais. O que, de fato, não dá certo e falha terrivelmente. Mas, afinal de contas, as histórias de Sherlock
Holmes não são misteriosas o suficiente para serem contadas, sem precisar recorrer a esse elemento
sobrenatural?
“Os Irregulares de Baker Street” está disponível na Netflix.
Nota: 0.5
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