As cicatrizes que o racismo esculpiu na vida das pessoas ao longo dos anos estão tão surrealmente profundas na sociedade que, para transmitir a gravidade do tema, os cineastas (diretores, roteiristas etc.) estão se valendo das ferramentas do exageradamente chocante que os gêneros cinematográficos podem oferecer. Essa estratégia foi implantada algumas vezes nos últimos anos: “Lovecraft Country”, uma saga de terror que narra o legado do ódio nos Estados Unidos dos anos 1950, e “Medida Provisória”, filme nacional de 2022 que aborda a deportação compulsória de brasileiros negros para a África, são dois excelentes exemplos.
É
nessa esteira que caminha a série “Them”, produção original da Amazon Prime
Video. A primeira temporada da antologia, intitulada de “Covenant”, foi criada
por Little Marvin, que também atua como produtor executivo ao lado da
produtora Lena Waithe. A abordagem de “Them” fornece uma premissa
intrigante, porém, bastante desconfortante e angustiante ao criar um retrato do
racismo suburbano, mesclado com terror sobrenatural.
Na trama, Henry e Lucky Emory é um casal afro-americano que, em 1953, decide se mudar com suas duas filhas da Carolina do Norte para Compton, um bairro totalmente branco em Los Angeles. A intenção da família é tentar escapar da discriminação e da segregação racial, predominantes no sul dos EUA, para viver uma vida longe das leis segregacionistas que imperavam na época durante o período conhecido como A Grande Migração.
Porém,
o que parecia um sonho, se transforma em um pesadelo. Ao chegar no bairro novo,
a casa dos Emory logo se torna palco de estranhos fenômenos e de hostilidade. Com
o passar dos dias, eles começam a ser assombrados por forças sobrenaturais que
começam a aparecer dentro da casa e atormentados pelos vizinhos racistas,
recebendo milhares de insultos e ameaças sobrenaturais, que ameaçam
destruí-los.
De forma geral, “Them” é uma série que combina segregação racial com terror sobrenatural ao abordar uma família que, para escapar do racismo nos anos 1950, precisa se mudar para o leste dos Estados Unidos e começar uma vida nova. Assombrados por memórias trágicas do passado, os Emorys tentam se adaptar em uma época em que a família sofreu um ato de violência racista quando ainda moraram na Carolina do Norte. O terror racista, somado ao sobrenatural apresentado aos Emorys ao longo de seus primeiros 10 dias em sua nova casa em Compton, é mostrado de forma bem chocante e impressionante, fazendo com que a série seja considerada pesada, pois a produção combina dois elementos diferentes em sua narrativa: do tipo cometido por humanos e do tipo sobrenatural.
A
Amazon Prime Video é ousada ao apresentar uma produção de terror moderno,
especialmente quando também aborda racismo e preconceito racial. “Them” é uma
série que chega a sérios extremos para chocar o público ao mostrar o inferno
suburbano a que uma família negra é submetida na década de 1950, mesclando a narrativa
com elementos sobrenaturais para assombrar os personagens. O resultado é mais
efetivamente impressionante do que somente o horror sobrenatural propriamente
dito. Nesse sentido, “Them” mostra, com maestria, que os monstros do racismo e
intolerância racial são penetrantes, angustiantes e perturbadores.
Para se chegar a esse resultado, “Them” usa os elementos narrativos de uma maneira exagerada e surpreendentemente chocante. Para que o público tenha uma ideia sobre o ódio racial nos anos 1950, os elementos de terror sobrenatural podem ser instrumentos narrativos fortes para enfatizar a aparente impotência e o isolamento assustador dos personagens negros naquele determinado ambiente narrado na história. No entanto, usar o sobrenatural como uma explicação para o ódio racial que esses personagens enfrentam deixa esses elementos (racismo e preconceito racial), de certa forma, fora de contexto.
Isso
representa um certo problema para a série, que vem à tona na forma da
personagem Betty Wendell. A vizinha branca loira racista torna-se um demônio
quando vê seus novos vizinhos chegando na vizinhança; e ela não poupa esforços
ao fazer de tudo para transformar a vida da família Emory em um inferno. Tratar
Betty como um simples monstro influenciada por forças malignas sobrenaturais
significa não empregar a ideia de que preconceitos raciais como o dela existem
dentro dos humanos. Tal preconceito e comportamento racistas são muito reais,
mas “Them” não consegue dar a Betty uma história de fundo plausível e bem
fundamentada, implicando que seu ódio racial se origina da influência
sobrenatural.
O subtítulo da temporada, “Covenant” (em tradução livre, significa “Pacto”), é uma referência aos Pactos Racialmente Restritivos, uma forma de manter a segregação em que os membros de uma comunidade se comprometem a não vender, alugar ou arrendar propriedades para pessoas negras. Embora não seja mais aplicável quando os Emory se mudam para Compton, tal pacto funciona com uma percepção de direito das famílias do bairro, como os Wendells, que acreditam que seu lugar na sociedade lhes dá o direito de praticar racismo e intolerância racial. É um retrato da forma como as propriedades do bairro foram sistematicamente negadas a pessoas negras.
O
próprio título da série (“Them”, que significa, em tradução livre, “Eles”) é,
ao mesmo tempo, revelador e intrigante. A quem “Eles” se refere? É a família
Emory, tentando viver suas vidas em paz? Ou é Betty e seus vizinhos, impondo
suas vontades e intolerância racial àqueles que consideram diferente deles? O poder de “Eles”, na série, reside no fato de que há ambiguidade a esse respeito.
Um dos maiores pontos fortes da série está em sua estética, principalmente com o incrível e elegante visual cenográfico. Das ruas e calçadas estilosas aos corredores e porões que escondem todo tipo de maldade nas sombras, “Them” não economiza no design visual. O cenário para tudo isso é o subúrbio ornamentado da década de 1950, no qual temos vislumbres de salas de estar e papéis de parede vistosos, sem mencionar os muitos vestidos impecáveis.
Outro
ponto forte é a excelente Edição. O enquadramento das cenas e a alternância
entre os planos abertos e fechados da família Emory e os dos vizinhos são perfeitos.
E isso também somando o excelente jogo de cores e luzes, que funciona muito bem.
O excelente elenco apresenta seus papéis com intensa energia. Deborah Ayorinde realmente dá tudo à sua personagem: ao longo da série, é Lucky quem prova ser a personagem mais crucial; claramente, ela é uma mulher forte que sempre sabe agir de forma sábia e calma. Deborah Ayorinde e Ashley Thomas compartilham uma excelente química juntos; os dois atores retratam habilmente os altos e baixos de seus personagens enquanto ambos lidam com racismo, intolerância racial, trauma, agressões e ódio desenfreado.
Alison
Pill também se destaca como a principal antagonista e tem um talento especial
para retratar a hipocrisia da vizinha racista e principal fomentadora de ódio
racial, mas que se esconde atrás de um vestido impecável, saltos altos e força
um sorriso extremamente falso no rosto. A capacidade de Pill de incorporar ódio
verdadeiro e não reprimido ao interpretar uma mulher branca racista e
desequilibrada é assustadoramente crível.
Retratar os piores tipos de intolerância racial, com uma perspectiva sobrenatural, sofridos pela família Emory, é a principal meta do enredo. Os Emorys são as vítimas em uma história de racismo e de terror sobrenatural, cujo sofrimento chega a um ponto de excesso perturbante e assustador. Porém, finalizar a série sem um final claro e determinado chega a ser uma banalização da meta que a história se propõe a contar.
Embora
o arco da família Emory (aparentemente) tenha se encerrado no final da 1ª
temporada, existem mais histórias que a antologia pretende contar, pois a
Amazon Prime Video encomendou diretamente duas temporadas de “Them”. Assim, o
streaming renovou a série para a 2ª temporada. Porém, ainda não houve um
anúncio oficial de quando será a data de lançamento da nova temporada.
“Them” elevou o nível de terror sobrenatural e racismo ao mergulhar nas maneiras horríveis em como as pessoas de Compton usam o racismo e intolerância racial em seu próprio benefício para viverem naquele bairro. A série é uma representação angustiante, chocante e exageradamente assustadora do árduo caminho que as pessoas negras devem percorrer para alcançar seus sonhos, bem como a força e a coragem necessárias para sobreviver em um mundo com muitas pessoas racistas. A série em tela mostra que não tem medo de ser perturbadora e de apertar os botões do desconforto, especialmente porque a família Emory enfrenta cada vez mais terror repugnante de seus vizinhos racistas – além de, também, terem que enfrentar os elementos sobrenaturais que os cercam.
O
horror da série se torna um tipo de dispositivo de narrativa brutalmente
pontiagudo e começa a incomodar cada vez mais conforme a história se desenrola.
Enfrentar os horrores do racismo e intolerância racial, que continuam a deixar
suas marcas na sociedade até hoje, é o que faz da série tão intrigante e
perturbadora. Ela não apenas aborda o gênero de terror sobrenatural, mas,
também, mostra a realidade de como a fonte do que é monstruoso e horrível
– o racismo e intolerância racial – vem das próprias pessoas; mesmo
que, cinematograficamente, seja apresentada de forma extremamente exagerada.
“Them” está disponível na Amazon Prime Video.
Nota: 8.5
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