O público não pode ser culpado por presumir que os filmes mais assustadores e impressionantes são aqueles apresentados somente no gênero de terror. No entanto, muitas vezes, existem vários outros tipos de filmes mais chocantes e impactantes do que os de terror. E, em algumas vezes, são aqueles que têm uma base na realidade (misturados com ficção, claro) – por mais absurda e exagerada que a premissa seja. Determinados filmes fornecem um vislumbre surpreendente de um futuro distópico e que os monstros mais malignos e maldosos não são criaturas demoníacas, mas, na verdade, são os próprios seres humanos os causadores de tais atrocidades.
Dentro deste contexto supracitado, a frase “volte para onde você veio” é extremamente inquietante, chocante, impressionante e impactante. É uma frase carregada de extremo ódio, racismo, intolerância e preconceito racial, que chega a beirar a loucura e insanidade da demência humana em seu pior estado de estupidez e maldade. Nessa esteira, imagine um governo, que opera em terras colonizadas por uma população quase que inteiramente descendente de países europeus, africanos e asiáticos, publicasse uma medida provisória para deportar os negros, descendentes de escravos da época da escravidão no Brasil, de volta à África. “Medida Provisória” é um filme que explora tal narrativa.
Em um futuro distópico, o governo brasileiro decreta uma medida provisória em uma iniciativa de reparação social pelo passado escravocrata, no Congresso Nacional, que aprova tal medida, obrigando os brasileiros negros a serem deportados de forma compulsória para a África. A aprovação da medida provisória afeta diretamente as vidas de todos os brasileiros negros, focando no casal formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antônio (Alfred Enoch), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que mora no apartamento deles.
No
entanto, quando os cidadãos negros começam a serem brutalmente presos e
deportados, o trio prefere se esconder no apartamento enquanto discutem, com
medo, o que fazer. Eles não pretendem aceitar tal medida provisória e nem
deixar que isso afete suas vidas e seu futuro. Com isso, os personagens debatem
questões sociais e raciais, além de compartilharem anseios que envolvem a
mudança no país. Vendo-se no centro do terror e separados por força das
circunstâncias, Capitú e Antônio não sabem se conseguirão se reencontrar
novamente.
“Medida Provisória” é o filme que marca a estreia de Lázaro Ramos na direção. O ator, diretor e roteirista pega uma já real ameaça racista e se pergunta como seria na realidade se um distópico governo de supremacia branca emitisse ordens para deportar a população negra do Brasil para a África, com a desculpa de assim ser considerada como uma reparação histórica pela escravidão no país – e que, para isso, tomasse medidas drásticas e brutais. O longa é uma adaptação de “Namíbia, Não!”, peça teatral escrita pelo ator e dramaturgo Aldri Anunciação, em que Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011.
O
filme começa de forma rápida, já com um jovem advogado de direitos humanos apresentando
uma liminar contra um novo departamento do governo, o Ministério do Retorno,
que apresentou um projeto voluntário que oferece aos negros uma passagem de ida
para algum país africano de sua escolha. Logo em seguida, a produção dá um
salto narrativo e passa ao modo de sobrevivencialismo de uma forma bastante
brusca, narrativamente falando, quando o governo já ordena a deportação
compulsória e autoriza esquadrões militares armados a sitiarem as ruas para
prender e deportar os cidadãos negros.
Em sua superfície, “Medida Provisória” é um filme de suspense com um cenário político distópico, onde um pequeno grupo de brasileiros negros tenta fugir e se esconder para evitar ser deportado, preso ou morto. Mas, ao fundo, a produção faz uma profunda reflexão e crítica social sobre o racismo e identidade: “O que significa ser brasileiro?”, “Quem é negro?”, “Quem é branco?”. Claramente, são temas que discutem questões raciais em um país onde a violência racial continua crescendo a cada ano. A direção de Ramos é ótima nesse sentido e ele faz um excelente trabalho ao abordar essas questões sociais e raciais. O que é tão aterrorizante no filme é o quão convincente Ramos pinta a fragilidade dos direitos das pessoas: basta dar alguns passos na rua.
Porém,
por mais interessante e mais impactante que seja a narrativa de “Medida
Provisória”, por mais eficaz que Ramos seja em chamar a atenção sobre as questões do racismo
e de identidade, a produção tropeça em algumas
perspectivas narrativas. O roteiro é vago em alguns pontos, como, por exemplo,
sobre os supostos acordos de imigração com os países africanos, e falha em
outros pontos por questões de implausibilidade, tal como a rapidez com que a Medida Provisória é sancionada e implantada. Para que o governo do Brasil
implementasse essa radical política de deportação, as nações da África teriam
que concordar com tal medida, algo que simplesmente não é mostrado no longa.
E, depois, tem mais outro tropeço: o Brasil não é um país com população predominantemente branca, em que os negros são uma minoria – muito pelo contrário: no Brasil, mais da metade (cerca de 56%) da população é negra ou parda. Sob esta perspectiva, a logística de reunir metade da população de um país com mais de 200 milhões de habitantes e deportá-las para a África é um ato praticamente impossível e exageradamente absurdo de se realizar.
Outro
ponto que restringe a narrativa do longa é como a história foca em como a
decisão governamental afeta apenas os três protagonistas e suas histórias
separadas no meio do conflito, não mostrando como tal ordem afeta outras tantas
famílias na mesma situação Brasil afora. E tudo isso sem mencionar que as
Nações Unidas são completamente omissas, sem dizer ou fazer absolutamente nada
sobre tal medida provisória compulsória implantada e a maneira brutal com que
os esquadrões militares agem nas ruas para prender e deportar os cidadãos.
Porém, mesmo que essas questões apareçam em segundo plano, e de forma extremamente superficial, elas não apagam os méritos de “Medida Provisória”. No entanto, para adaptar uma obra teatral em um filme não é tão fácil assim, sem que apareçam algumas evidentes problemáticas. Com um orçamento relativamente baixo (cerca de R$ 7 milhões), a produção tem dificuldades em apresentar um palco maior para que a trama se desenrolasse em nível nacional. Para começar, as forças do governo são reduzidas a apenas dois vilões – Isabel Garcia (Adriana Esteves), que implementa a política da medida provisória e Lobato (Claudio Gabriel), o Ministro do novo Departamento. E isso sem contar, também, a maldosa e racista Dona Izildinha (Renata Sorrah), a vizinha que faz de tudo para transformar a vida de Antônio, André e Capitú em um inferno.
Com
isso, o público tem pouca noção de como o fascismo reprimiu um país inteiro de
forma tão fácil, rápida e com tão pouca gente responsável. Em outras palavras,
e o resto dos políticos: Presidente, Senadores, Deputados, Governadores e
Prefeitos? O filme em tela simplesmente ignorou todas essas camadas políticas
para dar sequência no desenrolar da deportação compulsória que simplesmente
esqueceu de levar em consideração todos os trâmites legais e governamentais nas
fases nacionais, estaduais e municipais.
Apesar de tudo isso, a premissa distópica com que Ramos comanda é interessante e, ao mesmo tempo, chocante e angustiante de assistir, justamente porque a violência por motivos raciais está, atualmente, tão loucamente alta, grave e descontrolada em nossa sociedade. Dentro do contexto do longa, o público pode vislumbrar como é fácil perder certos direitos humanos em questão de pouco tempo. Basta uma decisão do governo e, de repente, muitos dos cidadãos brasileiros são obrigados a fazer ou deixar de fazer certas coisas contra a própria vontade e ficam aterrorizados com o que vai acontecer. É isso que torna “Medida Provisória” tão assustador e tão incrivelmente envolvente.
É
claro que uma deportação em massa de cidadãos, nestas condições apresentadas na
película, é um evento bastante exagerado, mas a produção apresenta o ser humano
como o próprio vilão em seu pior estado maléfico e de maneira absurdamente
chocante, contra o seu próprio semelhante; e tudo isso por uma simples questão
de cor de pele. Essa é uma ideia do atual retrato dos crimes de racismo que a
sociedade está vivendo, mas que está desenhada em sua forma extremamente mais
agressiva. O que é ainda mais impactante é a forma como o filme mostra o ódio
fervilhante aos negros no Brasil, quase que remetendo a forma hedionda com que
os judeus foram tratados durante a segunda guerra mundial pela Alemanha
nazista.
“Medida Provisória” tem um excelente elenco. As atuações fortes de Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge dão uma enorme estabilidade à narrativa. Os três são espetaculares em seus respectivos papéis, explorando seus personagens de forma convincente frente aos horrores racistas que a sociedade está enfrentando atualmente.
Alfred
Enoch (que interpretou Dean Thomas na adaptação cinematográfica da franquia
Harry Potter) consegue retratar com perfeição um jovem advogado idealista que
busca mudanças no país que ama, mas que não o ama de volta; com isso, o ator
mostra que tem um potencial excepcional. Seu Jorge consegue equilibrar o
excelente timing cômico com a destreza necessária para transmitir a seriedade e
profundidade de seu personagem, e de uma forma extremamente simpática e
carismática. Taís Araújo completa o trio com uma performance calma, tranquila e
visceral como uma mulher negra forte tentando lutar contra a situação perigosa
em que se encontra.
“Medida Provisória” foi exibido oficialmente pela primeira vez no Festival Internacional de Cinema de Moscou, na Rússia, em 3 de outubro de 2020. Em relação aos prêmios, “Medida Provisória” ganhou os seguintes: o Indie Memphis Film Festival, na categoria de Melhor Roteiro, em 2020; o Cordillera Filme Festival, na categoria de Melhor Filme; o Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, nas categorias de Melhor Realizador (para Lázaro Ramos) e de Melhor Ator (para Alfred Enoch); o Festival de Cinema Ibero-americano de Huelva, na categoria de Premio Manuel Barba al Mejor Guión (para Lázaro Ramos e Lusa Silvestre); o Pan Africa Film Festival, nas categorias de Jali Award (para Lázaro Ramos) e Canada Lee Awards (para Alfred Enoch); além de ter sido indicado, na CCXP Awards, nas categorias de Melhor Filme (Brasil), Melhor Diretor (Lázaro Ramos), Melhor Ator (Alfred Enoch) e Melhor Atriz (Taís Araújo).
A
produção estreou comercialmente em Portugal em 21 de novembro de 2021. No
Brasil, foi exibido oficialmente pela primeira vez no Festival do Rio em 15 de
dezembro de 2021. O lançamento comercial de “Medida Provisória” passou por uma
série de contratempos por impasses da Ancine (Agência Nacional do Cinema), ao
longo de um ano (entre novembro de 2020 e novembro de 2021), para autorizar sua
distribuição. Após várias negociações, a data de lançamento foi marcada para 14
de abril de 2022 no Brasil.
Embora “Medida Provisória” esteja lidando com um tema tão difícil, como a deportação compulsória em massa de negros para a África, o filme em tela é tratado com certo cuidado. Ramos é talentoso ao dirigir uma produção absurdamente impactante, que pretende ser um pouco satírica em sua premissa; mas, no clima atual em que estamos vivendo, parece tão assustadoramente plausível. Além disso, o diretor sabe como criar tensão e uma sensação de imediatismo e periculosidade de forma eficaz. A película aborda questões raciais no Brasil, servindo como um poderoso alerta e reflexão de como o racismo, ódio, opressão e intolerância podem levar ao impensável – por mais absurdo que a premissa possa parecer, ainda assim nos mostra o quão perigoso e maldoso o ser humano pode ser; e o filme o faz causando um grande desconforto.
Além
da própria Medida Provisória, em si, ser uma ordem extremamente horrível, abusiva, chocante e
drástica, os vilões do longa em questão nada mais são do que cúmplices e
reflexos de brasileiros brancos racistas que permitem que seus vizinhos,
familiares, amigos e colegas de trabalho sejam marginalizados, odiados,
discriminados, torturados, deportados e mortos. É nessa inação, cumplicidade e fomentação de violência racista mostrados no filme que permitem
que os negros sejam alvo de um tratamento tão cruel e desumano.
“Medida Provisória” está disponível na Globoplay e no Google Play.
Nota: 8.0
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