🚨ALERTA: A CRÍTICA CONTÉM IMAGENS QUE PODEM SER FORTES PARA ALGUNS LEITORES.🚨
Os
anos 1980 foram responsáveis por produzirem vários clássicos do cinema. É
inegável que foi uma década importante para a indústria cinematográfica,
produzindo filmes que são lembrados e assistidos até hoje. Tais produções marcaram
época em um período que desenvolveu roteiros tão originais tanto quanto são
excelentes, além de inspirarem tantos outros.
“A
Mosca” é um dos filmes mais icônicos e inovadores dessa época. Refilmagem do
longa “A Mosca de Cabeça Branca” (1958), o filme em tela inovou os gêneros de
horror e terror para um novo patamar e reescreveu a forma de apresentar tais
produções sob o molde da ficção científica. Com a incrível direção de David
Cronenberg (de “Senhores do Crime”, 2007), que também assina o roteiro, “A Mosca”
consegue fazer isso de forma extremamente chocante e impressionante; e, sem
dúvida, colocou seu nome no rol dos grandes cineastas do gênero.
Na trama, o excêntrico e brilhante cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum, de “Jurassic Park”, 1993) cria uma máquina de teletransporte de matéria e, após algumas experiências, decide testar a eficácia do experimento em si próprio. Porém, uma mosca entra no aparelho junto com Seth sem que ele perceba e o computador, inadvertidamente, decide provocar uma fusão do DNA do cientista com o do inseto, dando início a uma perigosa e grotesca mutação genética.
Contudo, Seth pensa que o experimento foi um sucesso, mas, gradativamente, as modificações fisiológicas começam a ficar aparentes. Em pouco tempo, ele descobre que as células da mosca estão tomando conta de seu corpo, cuja aparência de inseto passa a ser predominante; e, aos poucos, ele vai se transformando em uma criatura monstruosa. A jornalista Veronica Quaife (Geena Davis, de “Os Fantasmas Se Divertem”, 1988), namorada de Seth, vai testemunhando todos os estágios da transformação e, desesperada, tenta ajudar Seth em como interromper e reverter a dolorosa mutação; porém, o tempo é curto e o processo é rápido.
A primeira impressão que se tem sobre “A Mosca” é de ser um assustador filme de terror, pura e simplesmente. Entretanto, é mais do que isso, haja vista que a produção em questão não se limita apenas a assustar. Para isso, já existem vários outros longas com essa finalidade – tais como a franquia “Pânico” (1996 – 2021), a franquia “A Hora do Pesadelo” (1984 – 1994), “Maligno” (2021), “O Chamado” (2002), “O Exorcista” (1974) e “Os Outros” (2001). “A Mosca” se diferencia desses tipos de terror pelo fato de o roteiro ter a habilidade de misturar outros gêneros cinematográficos, que integram sua narrativa e apresenta um roteiro que, de forma eficiente, é estruturado em cima de ficção científica, suspense e, principalmente, de horror. E o objetivo do horror é causar pavor e repulsa no telespectador, que fica chocado e enojado quando vê algo impressionante durante o filme.
Nessa
esteira, “A Mosca” se classifica, perfeitamente, como um excelente clássico de
horror. O roteiro, brilhantemente estruturado e dirigido por David Cronenberg
em cima do roteiro previamente escrito por Charles Edward Pogue, consegue criar
uma produção visualmente chocante e repulsiva. As cenas de mutação e
decomposição física apresentadas durante a narrativa causam tanta repugnância, que esta
obra cinematográfica criada por Cronenberg continua sendo um dos maiores ápices
dos clássicos de horror até hoje.
Mas, “A Mosca” não se resume a cenas nojentas, apenas. O grotesco processo de degeneração física causada em Seth Brundle durante o filme é um mecanismo narrativo essencial na história que, além de ser o resultado de uma experiência mal sucedida, também faz com que o cientista entre em ruína ao perder sua própria identidade. Com isso, Seth entra numa batalha (inclusive, filosófica) para continuar a manter seu lado humano enquanto definha geneticamente cada vez mais.
“A
Mosca” mostra como o ser humano é frágil, facilmente dominado e manipulado ante
as impiedosas leis da natureza, que, rigorosamente, estabelece suas regras e
determina a submissão dos seres humanos, independente da vontade destes; mesmo
que lutem pela autopreservação. Por mais que o ser humano tente “brincar de Deus”
ao criar mecanismos científicos, a natureza é implacável ao se mostrar
rigorosa, sendo sempre predominante, mesmo que os seres humanos tentem
desafiá-la. Seth Brundle paga com sua humanidade ao tentar contornar as leis da
natureza burlando elementos genéticos de forma inadvertida; e a natureza
obriga-o a sucumbir à própria ruína por causa disso.
O cinema está cheio de filmes que apresentam experiências científicas que deram errado. Dentre as produções em que cientistas ultrapassam os limites da ciência ao tentar revolucionar as barreiras da engenharia genética, e que deram errado, estão: “Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros” (1993) – a franquia inteira, diga-se de passagem –, “Do Fundo do Mar” (1999), “A Experiência” (1995), “Frankenstein de Mary Shelley” (1994), “Mutação” (1997) e “O Homem Sem Sombra” (2000).
“A Mosca” é mais um exemplo de que se deve tomar cuidado para não extrapolar esses limites. Mas, diferente das outras produções supracitadas, David Cronenberg apresenta um filme que consegue chocar, e bastante, o público, com cenas nojentas, e o diretor entrega um material realista e muito bem feito.
E não é por menos. Os efeitos de maquiagem de “A Mosca” foram projetados e executados por Chris Walas, juntamente com o maquiador Stephan Dupuis. A intenção dos cineastas era dar ao personagem de Jeff Goldblum uma aparência machucada e cancerosa, que piora progressivamente à medida que a combinação genética de Seth Brundle com o da mosca se altera lentamente, resultando em uma criatura horrivelmente deteriorada. Chris Walas criou um trabalho absurdamente incrível e realista.
O
trabalho de Walas impressiona tanto pelo fato de ser, ao mesmo tempo, perfeito
e nojento, que seu nome (como responsável pela criação e desenho da mosca) foi
o primeiro a aparecer nos créditos finais do filme, antes mesmo do nome do
diretor. Não é à toa que “A Mosca” ganhou o Óscar na categoria de Melhor
Maquiagem para Chris Walas e Stephan Dupuis. Também ganhou o
prêmio Saturno nas categorias de Melhor Ator (para Jeff Goldblum), de Melhor
Maquiagem (para Chris Walas) e de Melhor Filme de Terror; além de ter sido
indicado nesse mesmo prêmio nas categorias de Melhor Atriz (para Geena Davis) e
de Melhor Diretor (para David Cronenberg). Por fim, a película também
foi indicada ao Prêmio Hugo, na categoria de Melhor Apresentação Dramática e ao
Prêmio BAFTA, na categoria de Melhor Maquiagem e Caracterização (para Chris
Walas e Stephan Dupuis).
Os efeitos de “A Mosca” envelheceram bem; considerando ser uma produção da década de 1980. Em termos técnicos, é uma produção atemporal que, mesmo depois de mais de 30 anos, continua chocante e impressionante com seu incrível e grotesco visual. A mesma impressão e reação que se tem hoje continua sendo a mesma que se teve nos anos 80 e 90. A maquiagem ficou tão realista que a atriz Geena Davis admitiu, posteriormente, que se sentiu genuinamente enojada durante as gravações. Sua reação de choque pode ser percebida em algumas cenas do longa, tal como na cena em que a orelha de Seth cai.
E,
tal como a personagem de Davis, o telespectador fica igualmente chocado e
enojado ao acompanhar a deterioração de Seth conforme sua mutação avança
gradualmente. O diferencial é a narrativa temporal com que a mutação acontece:
diferente do que o filme aparenta, o processo de deterioração genética em
Brundle desde a fase inicial até o último estágio demora quatro semanas e seis
dias para ocorrer.
Tanto esta versão de 1986 quanto a adaptação de 1958 foram inspiradas no conto de terror de ficção científica, escrito pelo franco-britânico George Langelaan, publicado na edição de junho de 1957 da revista Playboy. A história recebeu o Prêmio de Melhor Ficção do ano pela revista Playboy e foi selecionada para inclusão no Anual do Ano de Melhor Ficção Científica. “The Fly” também inspirou uma ópera, de Howard Shore, de 2008, baseada no filme de 1986.
Um
dos legados que “A Mosca” deixou foi a icônica frase “Tenha medo. Tenha muito
medo”, dita por Ronnie para Tawny em determinado momento do filme. Além de ter
sido usada como slogan na campanha de marketing do longa, a frase em questão (criada
por Mel Brooks, que estava envolvido na produção) foi indicada para a lista das
cem melhores frases do cinema e se tornou bastante popular na cultura
cinematográfica, sendo citada em várias outras produções. Vale destacar,
também, que o design das cápsulas de teletransporte criadas para o filme em
tela foi inspirado no cilindro do motor da Ducati 450 Desmo que Cronenberg
tinha na época das filmagens.
Jeff Goldblum dá um espetáculo de atuação; sendo considerada por muitos a melhor atuação do ator em toda sua carreira. E com razão: o ator consegue transpor com maestria toda a complexidade contida em seu personagem, desde sua mais calma, simpática e brilhante personalidade, passando pelas drásticas mudanças em seu intenso e agressivo comportamento conforme a mutação genética avança, até chegar no completo desespero em seu derradeiro estágio final, quase beirando à loucura. Com certeza, é uma das melhores atuações do ator em toda sua carreira – é uma pena que ele não tenha sido indicado ao Óscar na categoria de Melhor Ator para este filme.
Geena
Davis também está igualmente incrível, demonstrando (como já dito
anteriormente) uma atuação realista e empática. O público consegue facilmente
se identificar com sua personagem ao ver o quanto ela também sofre ao
acompanhar a degeneração genética de Brundle, de mãos atadas e sabendo que não
pode fazer nada para ajudar. E isso sem contar o que ela precisa fazer,
finalmente, por ser uma coisa necessária; o que demonstra seu auge no quesito
pena – coisa que não é nem um pouco fácil de ser feita. A química entre os dois
atores foi excelente; e isso foi um ponto positivo, haja vista que Goldblum e
Davis eram namorados na época.
Por fim, vale destacar a excelente Trilha Sonora, composta por Howard Shore, que capta perfeitamente a trilha dramática e entrega um intenso e angustiante resultado, que está de acordo com que a trama e a direção se propõem a oferecer.
David
Cronenberg e Chris Walas inovaram e elevaram o gênero de horror a outro patamar
ao apresentarem uma ficção científica impactante, chocante e impressionante. De
forma ousada (e bastante nojenta), mas com extremo cuidado, “A Mosca” é um
clássico que consegue entregar uma produção brilhantemente impecável e
visualmente grotesco. O longa em questão impressiona por ser exageradamente forte
e realista, esteticamente, mas o trabalho técnico atende perfeitamente a proposta
narrativa que o roteiro e direção se dispõem a apresentar. O impressionante trabalho da equipe da Chris Walas, Inc. entregou um material digno de Oscar, merecidamente entregue. Os cineastas alcançaram seu objetivo ao causar desconforto, angústia, repulsa e nojo, moldada na forma narrativa, de tal forma que poucos
filmes conseguiram proporcionar. Com isso, sem dúvida, colocou “A Mosca” na
lista dos ícones cinematográficos mais inovadores já produzidos, elevando a
obra a um eterno clássico.
“A Mosca” está disponível na Star+.
Nota: 9.5
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