Quase todo mundo já ouviu falar de Bonnie e Clyde, o casal de criminosos que roubava bancos durante a Grande Depressão, nos anos 1930. Apelidados de “Romeu e Julieta do crime” pela imprensa da época, a dupla era idolatrada como uma espécie de Robin Hood pelos populares locais, pois era vista como dois símbolos da luta contra a opressão do Estado.
Viajando
pela região central dos Estados Unidos com um Ford V8 roubado e altamente
armados, Bonnie e Clyde ficaram conhecidos por mais de uma dúzia de assaltos a
bancos e, com frequência, assaltos a pequenas lojas ou postos de gasolina
rurais. Ao longo dos dois anos de assassinatos, assaltos e fugas, acredita-se
que a dupla tenha matado, pelo menos, nove policiais e inúmeros civis que
tentaram confrontá-los.
Com o passar do tempo, Bonnie e Clyde se tornaram ícones da cultura popular norte-americana através de diversos filmes, que retrataram a trajetória do casal de várias formas e foram de grande inspiração para vários outros filmes policiais. Mas, em todos os filmes que contam a história de Bonnie e Clyde, o casal em si sempre foi o foco principal.
Porém,
“Estrada Sem Lei” traz uma nova perspectiva sobre o caso e a narrativa retrata as
investigações policiais e perseguição de Bonnie e Clyde pelos dois Texas
Rangers responsáveis por perseguir e capturar (ou matar) o casal. Em 1934,
Frank Hamer (Kevin Costner, de “Estrelas Além do Tempo”, 2016) e Maney Gault
(Woody Harrelson, de “Três Anúncios Para Um Crime”, 2017) são dois policiais
Texas Rangers aposentados quando Bonnie e Clyde começam sua onda de assaltos e
assassinatos. Porém, quando o FBI se mostra incapaz de capturá-los após dois
anos de fracassos, Hamer e Gault são recrutados como investigadores especiais
para resolver o caso, localizar e prender a dupla.
Baseado em fatos, o foco central do filme em tela se concentra nos dois policiais (aposentados) sendo recrutados pela governadora do Texas, Miriam “Ma” Ferguson (Kathy Bates, de “O Caso Richard Jewell”, 2019), para comandarem a operação de captura, viajando pela região em que a dupla de criminosos costuma seguir. Relutante em trazer a corporação dos Texas Rangers de volta à ativa, Fergunson se aproveita de brechas na legislação estadual para nomear Hamer e Gault como patrulheiros do serviço especial rodoviário, a fim de ambos terem poderes oficiais para liderarem a operação policial.
“Estrada
Sem Lei” faz uma abordagem diferente dos demais filmes que contam a história já
tanto conhecida de Bonnie e Clyde e foca mais nos esforços da força policial
tentando rastrear, perseguir e conseguir alcançar a dupla. O longa em questão
narra o lado mais burocrático e os bastidores de todo um procedimento policial
em relação às investigações e perseguição que culminou na morte do casal famoso.
Sob esse prisma, o diretor John Lee Hancock entrega um filme que intensifica as dificuldades de uma investigação e perseguição policial, em forma de drama policial em vez de um policial recheado de ação, propriamente dito. O longa em questão é moldado desta forma para retratar a perspectiva da Lei em sua complicada busca pelos dois fora-da-lei. Nesse sentido, Hancock acerta ao apresentar uma produção com essa ótima proposta, haja vista que, no filme em tela, Bonnie e Clyde, basicamente, são retratados meramente como coadjuvantes, aparecendo apenas de relance no começo (quando Bonnie resgata Clyde da prisão) e no final do filme, quando os dois são, finalmente, emboscados pela polícia. Ponto positivo para essa abordagem narrativa; é o que torna “Estrada Sem Lei” um diferencial.
O
roteirista John Fusco (de “A Cabana”, 2017) decidiu confeccionar o roteiro de
“Estrada Sem Lei” desta maneira para intensificar a forma com que a população
idolatrava Bonnie e Clyde, principalmente porque o casal roubava dinheiro dos
bancos durante uma época em que os Estados Unidos viveu uma grave crise
econômica após a quebra da Bolsa de Valores de 1929, culminando em uma enorme
recessão ao longo da década de 1930; com isso, muitas famílias perderam seus
empregos e, também, suas casas por causa de execuções de hipotecas bancárias. Essa
grande devoção que os populares tinham pelo casal se deu justamente porque boa
parte da população estava sofrendo com a fome, desemprego, desigualdade social
e com a perda de suas casas para os bancos. Nesse contexto, os bancos eram
tidos como os vilões e Bonnie e Clyde eram os verdadeiros heróis, haja vista
que eles se rebelaram contra um sistema que prejudicou muitas dessas pessoas,
assaltando vários bancos que estavam lucrando.
Essa abordagem foi muito bem explorada justamente para justificar a complexidade política, policial e social do filme, mostrando como os bancos estavam preocupados com tal situação, como os políticos estavam sendo pressionados pelos banqueiros, a atenção com que a mídia focava no casal e como a dupla era idolatrada pela população. Essa nova perspectiva no roteiro de John Fusco sobre a investigação e captura do que talvez seja o casal mais famoso dos Estados Unidos pode não ser do agrado geral, pois, diferentemente de outros filmes de perseguição policial que utilizam o elemento ação ao longo de todo o filme, “Estrada Sem Lei” subtrai este elemento, não por completo, mas em boa parte.
E
Fusco o faz para focar mais na parte burocrática da investigação em si e na
dificuldade que as autoridades têm para realizar a perseguição do que na ação
propriamente dita. Isso pode deixar o longa em questão com um ritmo um pouco
lento e, até certo ponto, bastante parado para filmes do gênero, principalmente
por conta dos longos diálogos. Porém, Fusco e Hancock alcançaram seu objetivo,
entregando um ótimo material, cuja narrativa apresenta uma visão nova (ou seja,
sob outro ângulo) sobre um assunto já conhecido.
Outro ponto positivo presente em “Estrada Sem Lei” é a excelente Fotografia, dirigida por John Schwartzman. O longa em questão se utiliza bastante do elemento “Road Movie”, presente em filmes cujas narrativas apresentam cenários com planos abertos ambientados, majoritariamente, em estradas. Esse elemento de “Road Movie” se encaixa perfeitamente no contexto no filme em tela, com uma ampla visão do horizonte e ressaltando o cenário em que o longa é ambientado. Um dos filmes pioneiros que explora esse elemento narrativo é justamente o filme “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Bala”, clássico de 1967 com Warren Beatty, Faye Dunaway e Gene Hackman.
Em
filmes com a característica “Road Movie”, os carros dão total liberdade à(s)
pessoa(s). Bonnie e Clyde se utilizam dessa liberdade para viajarem pelas
estradas abertas em um carro roubado e se aventurarem na região central em que
percorrem para roubarem bancos como forma de se rebelar, mostrando seu inconformismo
ante à crise econômica e expressar seu descontentamento com o fato de que os
bancos estavam lucrando absurdos com a situação. Tal argumento narrativo pode
ser conferido em determinado momento do filme em tela, em que Hamer e Gault
precisam parar em um posto de combustível para abastecer o carro e o frentista
defende tais atitudes de Bonnie e Clyde.
Outro ponto que merece destaque é o Design de Produção. A equipe de arte de “Estrada Sem Lei” responsável pela cenografia e vestuário fez um trabalho incrível e competente ao recriar toda uma ambientação digna dos anos 1930. Tudo está bonito e condizente com a proposta, desde as cidades em si, passando pelas estradas urbanas e rurais, os carros e armas da época até, finalmente, com o belo figurino (vestidos e ternos) usado pelas pessoas na década em questão.
Por
fim, não se pode deixar de falar no excelente elenco de “Estrada Sem Lei”.
Kevin Costner e Woody Harrelson são um espetáculo em termos de atuação. Os dois
atores têm uma ótima química em cena. Há algo em comum entre os seus
respectivos personagens: o desgaste físico, mental e emocional com que os dois
policiais têm que lidar com a investigação em meio a tantas viagens cansativas
por longas horas na estrada, percorrendo várias cidades para alcançarem Bonnie
e Clyde. Nesse quesito, Costner e Harrelson dão um show de interpretação.
Selecionado como Headliner no Festival South by Southwest 2019, “Estrada Sem Lei” chama a atenção pela diferente abordagem em sua narrativa, focando especificamente na investigação e perseguição policial para capturar Bonnie e Clyde. O filme em tela deixa o casal criminoso de lado em seu enredo para contar a história de como foi complicado e cansativo para as autoridades passarem dois anos em seu encalço, até, finalmente capturá-los em uma estratégica emboscada.
Com
isso em mente, “Estrada Sem Lei” conta o outro lado de uma história bastante
popular, mostrando, de forma mais intensa, a complexidade de uma caçada
policial, apresentada sob um ângulo pouco conhecido. O longa em questão é um
excelente thriller investigativo, carregado de suspense e com menos ação do que
várias outras produções que contam a mesma história, deixando a história um
pouco monótona. Pode não ser um filme que agrada quem estiver procurando um
filme carregado de ação e tiroteio. Porém, impressiona pelo visual, pelas atuações,
pela ambientação e pela narrativa em si, além de se destacar pela comunicação de
como as investigações policiais começaram e se desenrolaram arduamente, até sua
conclusão.
“Estrada Sem Lei” está disponível na Netflix.
Nota: 9.0
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