"Eu Nunca" mais uma vez é um prato cheio de diversão que privilegia a diversidade e quebra estereótipos.

Uma das principais apostas da Netflix nos últimos tempos tem sido a produção de séries que tenham como público alvo os adolescentes. Isso tem sido, inclusive, ponto sensível de crítica por parte dos assinantes do streaming que argumentam estarem sentindo falta de lançamentos de conteúdos com uma abordagem um pouco mais "cult". 

A realidade é que os streamings, de modo geral, estão atrás de audiência e o consumo e alcance por trás desse tipo de produto, com uma pegada mais teen, tem aumentado massivamente. Além disso, não dá pra negar que algumas tramas transpassam a questão da idade e atraem igualmente o público adulto, como é o caso da série cuja crítica de hoje é dedicada, Eu Nunca (Never Have I Ever). 

A segunda temporada de Eu Nunca estreou no dia 15 de julho deste ano na gigante Netflix e é inspirada na história real de Mindy Kaling, criadora da série, que cresceu em Boston e é filha de pais indianos. A série, que teve sua primeira temporada bastante elogiada pela crítica, narra o dia-a-dia de uma estudante americana com ascendência indiana em seus desafios diários típicos da adolescência e que esbarram com os inúmeros aspectos culturais inerentes de sua criação familiar.

A trama se inicia a partir do exato momento do encerramento da primeira temporada. Após espalhar as cinzas de seu pai no mar, Devi (Maitreyi Ramakrishnan) beija Ben (Jaren Lewison) e acaba dando início a aquele que será o norteador dos dez novos episódios, o triângulo amoroso: Devi x Ben x Paxton (Darren Barnet).

O interessante em Eu Nunca é que ainda que a comédia romântica se utilize de assuntos de certa forma recorrentes em produções do gênero, existe uma boa dose de ousadia e empoderamento na hora de tratar certas pautas e uma naturalidade pouco vista em outras séries. Por isso, não espere uma Devi comportada e recatada, como as mocinhas que víamos em séries de anos atrás. Temos uma protagonista arrojada, que está longe de ser perfeitinha (LONGE MESMO), e é completamente suscetível a falhas, o que torna a série menos previsível. Devi é aquela clássica adolescente, por vezes chata, mimada e difícil de lidar e isso torna tudo tão real e passível de identificação, que torna o show, sem dúvida, um destaque do catálogo.

Dos seus interesses amorosos, Paxton é dessa vez aquele que ganha mais tempo de tela. Enquanto na primeira temporada acompanhamos mais  Ben e seu relacionamento familiar conflituoso, nessa segunda, conhecemos o lado menos bad boy de Paxton, ainda que camuflado por antigos costumes. Certamente, esse é o tipo de triângulo difícil de decidir e escolher torcida, já que a medida que a série desenrola surgem novos prós e contras para cada um deles.

Para apimentar a história, surge uma nova estudante, Aneesa (Megan Suri), e ela é ainda por cima indiana. A partir daí, Devi começa a se sentir mais insegura do que nunca e inúmeros eventos hilários se desdobram, além de claro alguns debates sérios, entre eles um acerca de transtornos alimentares, algo que ainda não tinha sido trabalhado e que, mesmo que não tenha sido aprofundado no enredo, é de extrema relevância.

A nova temporada prende a atenção e novamente conta com narradores que fazem toda a diferença. O elemento narrativo, cujo tom muita lembra o utilizado na série Todo Mundo Odeia o Chris (Everybody Hates Chris), diverte, nos direciona quanto aos desejos e expectativas dos personagens e, acima de tudo, é debochado, o que dá um toque especial.

Somada a uma construção minuciosa e acertada de roteiro, não dá pra falar de Eu Nunca sem exaltar seu elenco. Maitreyi Ramakrishnan acerta em cheio ao dar o tom à protagonista dessa história. Sua personagem é aquela jovem fácil de se ter empatia, ao mesmo tempo, você tem vontade de deixá-la de castigo eternamente por alguns excessos e comportamentos. Vale ressaltar que a jovem atriz dá show nos momentos dramáticos, enfatizando os traumas decorrentes da perda do pai de uma forma brilhante. As cenas no consultório durante as sessões de terapia são um acerto tremendo e espetáculo a parte garantindo sempre risadas, com a excelente participação de Niecy Nash, que interpreta a Dra Jamie.

Os arcos dos personagens coadjuvantes mais uma vez são interessantes. Kamala (Richa Moorjani), prima de Devi, tem uma história leve e divertida, porém com uma forte mensagem de conscientização. Além de refletir sobre seu relacionamento e futuro dentro dos padrões de sua cultura, acompanhamos especialmente sua experiência em seu doutorado enfrentando o machismo estrutural do local, uma vez sendo uma mulher indiana e cientista.  Vale ressaltar também que nessa temporada a mãe de Devi, Nalini (Poorna Jagannathan), tem um pouco mais de evidência e conhecemos melhor sua personalidade quando não está próxima da filha e de seus deveres maternos.

Um dos carros chefes da série são as duas melhores amigas de Devi. Fabiola (Lee Rodriguez) começa a perceber que, mesmo após se assumir lésbica, ela continua não sentindo a completa sensação de pertencimento. Seu arco é tratado de uma forma muito inteligente, pois o foco está muito além da orientação em si. 

Eleanor (Ramona Young), um dos principais alívios cômicos (e que faz as melhores caras e bocas), por sua vez, inicia um relacionamento tóxico, o que tornará a amizade do trio conflituosa. As duas ganham mais ênfase na segunda metade da temporada, já que na primeira metade a  história acaba girando meio que em torno apenas de sua protagonista. 

A série não conta com grandes falhas, mas sim alguns excessos. Alguns personagens extrapolam o nível do caricato, como é o caso do melhor amigo de Paxton, Trenton (Benjamin Norris), assim como alguns meninos do grupo de robótica, e isso chega a desgastar, já que é um elemento utilizado repetidamente.

A segunda temporada de Eu Nunca é superior à primeira e traz o desejo por sua renovação. Tomara que a Netflix perceba a importância da mensagem dessa série antes de iniciar a temporada da guilhotina, vulgo cancelamentos.

Nota: 8,5


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