Quando se faz uma análise crítica de uma obra do passado é esperado que a mesma seja criticada tal qual o contexto em que foi feita, enxergando suas decisões hoje aceitas como questionáveis como parte de seu período. Entretanto, analisar algo do passado tal qual, é contraprodutivo na tarefa de se entender o que mudou desde então. No caso de "Imitação da Vida", é maçante pensar o quanto esse filme dentro de sua época pode ter aberto os olhos de muitos expectadores a respeito do racismo, enquanto ainda brinca com tropes claramente racistas.
O principal problema da obra se localiza no simples fato de Delilah não ser a protagonista, pesquise qualquer coisa a respeito do filme e vai encontrar discussões a respeito da personagem de Beavers e sua relação com a filha, porém o filme em si aparenta se intimidar em dar holofote para essa discussão, preferindo restringir Delilah e Peola para uma história secundária a das Pullman. Chega a ser frustrante ver o filme focar no romance de Beatrice com ictiologista (tal que a falta conhecimento comum do que é um ictiologista é uma piada irritante ao longo do filme) introduzido na segunda metade do filme enquanto a relação de sua servente com a filha, uma trama mil vezes mais envolvente, é deixada em segundo plano.
Se referir a Delilah ainda como servente de Beatrice após as mudanças ocorridas em suas vidas é complicado, mas o fato é que o filme faz um caso muito claro de que as mulheres negra e branca não são iguais. Numa cena particular vemos isso de forma nítida quando Beatrice aproveita uma festa para celebrar um sucesso que não poderia ter acontecido sem Delilah, enquanto isso acontece, Peola e Delilah continuam no andar de baixo da casa fora da festa.
A personagem personagem Peola Johnson é a verdadeira razão desse filme ser memorável. Interpretada pela atriz também mestiça Fredi Washington, Peola sofre com o fato de que apesar de ter a pele branca, sua herança negra ainda a "assombra". Nos Estados Unidos, a identidade étnica é vista sob a ótica do que eles chamam de "One drop rule" ("Regra da única gota" em tradução livre) em que qualquer pessoa de ascendência africana, independente do tom de pele, é vista como negra. Lamentável que está trama tomou lugar secundário no filme, o que em primeira análise parece quase que uma decisão artificial, tudo leva a crer que Delilah e Peola são as protagonistas do filme, mas o roteiro as segrega para coadjuvantes da patroa e filha branca, cujos arcos não são nem de longe tão bem construídos.
Nesta trama, nós conhecemos intimamente Delilah e Peola, apesar do filme dar mais detalhes sobre o passado de Beatrice e sua filha Jessie, não temos nem de longe o mesmo nível de introspecção do relacionamento das duas como temos das Johnson. Louise Beavers faz um trabalho excelente como Delilah, temos toda essa noção do quanto ela subserviente que é semelhante a filmes como o brasileiro "Que Horas Ela Volta?", essa clara posição da personagem se sustém ao longo do filme em que apesar de sua "ascensão", as dinâmicas não mudam, apenas o contexto. Neste sentido, o desenvolvimento da personagem Peola é perfeitamente compreensível uma vez que aquilo visto como ser uma mulher negra jamais poderia lhe ser atraente.
Entretanto, o filme parece reprovar o comportamento de Peola, e não lhe oferece a mesma simpatia que facilmente vem parte do público. Não é de se esperar que o filme concorde com a atitude de Peola, mas a mensagem de sua ingratidão é explicitada ao fim do filme (tal final que estende por mais alguns minutos para dar fechamento ao fraco plot das Pullman).
Como história, "Imitação da Vida" não é ruim, é meramente datado e cheio de conceitos que nós como sociedade já transcendemos há décadas, porém não deixa de ser um excelente estudo de relações raciais e de gênero, mas um que deve ser visto sob um olhar crítico e contemporâneo de forma que possamos compreender porque essa não é mais a história a ser contada, ou melhor, porque não é essa não é mais a forma que essa história deve ser contada.
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