Dickinson dá show de criatividade e entrega uma comédia super atual.

Histórias que envolvem personagens reais sempre instigam a curiosidade e atraem a atenção. Quando o nome em questão é Emily Dickinson então, é impossível conter a ansiedade. Mas calma, se não reconhece o nome, eu te explico. Emily Dickinson é uma famosa poetisa americana que viveu durante o século XIX de certa maneira reclusa e que, logo após seu falecimento, sua família encontrou mais de 1750 poemas de sua autoria. Dentre muitos poemas e cartas, alguns têm como principal interlocutora sua cunhada, Susan Gilbert, com quem demonstrava um carinho especial. Agora imagine contar essa história fazendo uso de liberdade criativa, uma roupagem mais moderna, repleta de carisma e jovialidade.

O Apple TV+ em sua estreia, ainda em 2019, lançou a série Dickinson inspirada justamente nesse famoso nome da literatura e tendo como alvo o público mais jovem. A série é uma comédia e conta com dez episódios. Sua criação e produção são assinadas por Alena Smith e tem como protagonista ninguém menos do que a cantora e atriz Hailee Steinfeld, uma das mais novas queridinhas de Hollywood. Embora esta crítica se refira à primeira temporada, vale ressaltar que a segunda temporada está em andamento e a terceira já está confirmada pelo streaming.

Já antecipo que você não deve esperar uma série biográfica aqui. A liberdade criativa é o que define essa série. A partir de poemas, Alena Smith tomou a liberdade de tentar descobrir o que se passava na cabeça da artista e assim construir seus arcos, em um formato ousado e capaz de dialogar diretamente com a geração atual, ainda que maquiado por uma atmosfera do século XIX.

A série retrata o dia-a-dia de Emily (Hailee Steinfeld, Bumblebee), que é de uma família abastada. A jovem é a segunda filha de Edward Dickinson (Toby Huss), que concorre a um cargo político e ainda por cima é autor de um artigo que fala explicitamente sobre o papel da mulher na sociedade, cujo teor é extremamente patriarcal e bem a cara dos Estados Unidos pré-abolicionista. O talento de Emily com as palavras é tamanho e seu maior prazer está em ler e escrever poesias, que não podem ser publicadas, todavia, pelo simples fato dela ser uma mulher.

Seu mundo vira de cabeça pra baixo quando a jovem descobre que sua melhor amiga e interesse amoroso, Susan “Sue” (Ella Hunt, Intrusos), casará com seu irmão, Austin (Adrian Enscoe). Enquanto Emily tenta se acostumar a esse novo cenário, que ela não pode impedir uma vez que Sue está órfã e desamparada, ela ainda por cima terá que se livrar das inúmeras tentativas da mãe (Jane Krakowski) de lhe conseguir um pretendente, até encontrar em Ben (Matt Lauria) sua versão masculina e apaixonante.

O desenrolar da história acompanha a poetisa, detentora de um pensamento muito a frente de seu tempo, em um momento no qual explora sua sexualidade, ao mesmo tempo que se mantém na luta por direitos em uma sociedade extremamente machista e misógina que não permite o direito ao voto, ou de frequentar universidades e tampouco a liberdade de divulgar aquilo que ela tanto ama, que são seus poemas. De forma lúdica, a jovem tem diálogos com a Morte, interpretada por Wiz Khalifa, que ela não enxerga como algo ruim, pelo contrário, como se fosse um desejo profundo, ainda que um tanto quanto distante. Em meio a tudo isso, a escravidão é debatida e exibe de pano de fundo os Estados Unidos que caminham para uma Guerra Civil, período esse que sabemos que deixou milhares de mortos.

O grande acerto da série está em suas protagonistas. Emily é uma jovem forte, determinada e longe de ser piegas. É também sarcástica, egoísta, falha e fútil, distante da perfeição que as “heroínas” tendem a apresentar e isso funciona muito bem. Hailee tem um timing para o humor preciso e consegue migrar para o drama com brilhantismo, entregando uma personagem extremamente cativante. Ella Hunt é aquela atriz que fala com o olhar. Sua personagem Sue, apesar de não receber a merecida ênfase em sua trajetória individual, esconde muito mais do que aparenta. Consegue ser decidida e firme quando necessário e é a única que consegue controlar a impulsividade da amiga. Emily e Sue formam um casal pelo qual é impossível não torcer, dado o carisma e entrosamento das duas, ainda que sobre elas paire a certeza de um romance impossível para a época.

A mistura do moderno e do antigo também é um acerto e sem dúvida atrai o público alvo. Nos deparamos com uma trilha sonora repleta de canções atuais, cenas onde vemos os jovens dançando, flertando e se "pegando" como se estivessem numa trama contemporânea, além de jargões e palavrões compatíveis com as redes sociais de hoje em dia e, ainda assim, tudo isso cai muito bem e é muito bem amarrado.

O roteiro peca, no entanto, em enfatizar demais Emily em detrimento dos demais personagens que exibem jornadas igualmente interessantes. Sue, por exemplo, passa uma temporada como governanta em outra cidade, um arco que poderia ser intenso, sobretudo ao expor questões tais como o abuso, porém é minimizado a pouquíssimas cenas. A irmã mais nova dos Dickinson, Lavinia (Anna Baryshnikov) é mais do que o alívio cômico. Sua personagem traz a temática da aceitação do corpo, bem como os tabus quanto à exposição da intimidade e liberdade sexual, que acabam reduzidos a um ou dois episódios apenas, o que é uma pena.

Os três últimos episódios dão mais ênfase ao contexto histórico o que abre um infinito de possibilidades animadoras para as próximas temporadas. A relação complexa entre Emily e seu pai também ganha novas camadas e promete plots tocantes. A série não vai cair no gosto de todos, por suas peculiaridades e modo único de ser, mas confesso que foi exatamente isso que me atraiu. Para aqueles em busca de algo leve, com um ship fofo, que ao mesmo tempo é extremamente crítico e audaz, fica o convite. Aventure-se no sensível e divertido universo das palavras de Dickinson!


Nota: 7,5

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